segunda-feira, 14 de julho de 2008

Fome (Conto)

- Aqueles olhos-labareda a fitar-me, incandescidos e sem estirpe... Observa, arranca...! e desvio-me ao som dos cascos, em galope-sangue a pisar-me o estômago, urrando a sina de estar aqui, vida derramada... Isso apenas; derretida, escorrida, espraiando-se na luz difusa do meu candeeiro-peito... Sorvo as últimas gotas de lu-ci-dez quando a luz-se-fez, quando os cascos de Lú-ci-fer vociferava impropérios aos meus intestinos, enquanto o fogo de Prometeu lambia os gozos; gotículas de felicidade humana pontuadas em Zaratustra... Sou o Demiurgo... Morro em mim... A vida sugada pelos inexoráveis ditames da Vontade; saga sanguessuga dissimulada em existência. E os porquês se perdem, e os pulmões se inflam, e o escroto murcha...

Acordara naquela manhã com uma fome fora do normal. Devoraria tudo, sem medo, sem mágoa, como um Arjuna Tupiniquim. "Just do It"; pululava em sua mente inoculada de merchandising. Tateando a penumbra do quarto fechado, fome crescendo, ondas o invadia em freqüência modulada, batidas High-Tec na antixenofobia antropofágica da sua alma... alimentava-se...

Via-se na rua, andando, pessoas passando, pensando passado, refeitas, lutando. E a cada passo, sabia-se mais sábio na sucessividade do tempo. E no paço, sabia-se sadio, na coexistência dos espaços, alimentando-se na urbanidade hostil da selva concreta, cinza. Crescia junto aos cumes pontiagudos dos edifícios, aos que não se viam, em mundos paralelos, ficcionados em Buracos Negros, friccionados na pornocibernética do contato à distância.

- Os tecnocratas não sentem, cheiram, degustam, tocam, vêem... Quero morrer no campo, longe de tudo, deixar-me aos devoradores microscópicos a liberdade do meu pensamento pagão, entre planícies de mandrágoras... Em que acreditar ? As coisas me parecem meias verdades, dissimuladas em córtex, poesia, Darwins e mecânica quântica... É vã a busca por alimento numa terra sem identidade, amoral; faminta por saber-se algo.... que não sente...

No paço municipal, via-se mudo, olhando os transeuntes em cut-ups, past-ups, clips, idiossincráticos, como Requiém de Mozart ou Voodo Chile de Hendrix, polifônico, formigando as mãos, salivando os olhos em direção às pessoas mudas, curtas, sincronizadamente em passos largos ao paço público, lúdico.

Vozes, fome, olhos-labareda entreabertos no esôfago, fome... Via-se no centro de tudo, olhando para cima, ao cume dos prédios, girando eletrosfericamente na calçada de fótons, órbitas, geodésicas e nebulosas, faminto e só... Macunaíma esférico, desvairadamente Sampa de todos nós...

- Eu posso contemplar... Posso no paço, contemplar meus passos tímidos, ousados e trêmulos. Mas devoro ! Só assim sou... Mordendo, arrancando pedaços suculentos em postas de sangue fresco, chupando os ossos, mordendo a pélvis, arrancando sussurros destemidos da fome minha, só minha... Cortando transversalmente Oswald, Picasso, e Dali... Que vida dadaísta... Busca do belo ? O belo é bom ? O bom é belo ? O que é belo e o que é bom ? A arte é gruta, vagina, úmida e incandescida, é re-volta à Terra, útero e mãe, clitóris-púbis... Curvas do quadril-cintura... Colo... Arte-ovário, pênis-poeta ! "Lingam-Yoni".

Gilberto M. Jr. - 14/11/1998

 

1 comentários:

AngelaZ disse...

Um conto cáustico, incisivo, aflitivo e comovente.

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