Ontologia, Epistemologia, Ética e Existência...

Se a Ontologia se preocupa com o fundamento daquilo que percebemos como realidade, ela precisa se perguntar como, racionalmente, podemos ter acesso a esse fundamento para entende-lo, descreve-lo e conhece-lo. Precisa se perguntar se esse acesso também nos revelaria um propósito nas coisas ou se esse fundamento apenas caracteriza a coisa sem que seja possível, sem tomada de pressupostos, inferirmos propósitos ou objetivos a priori.
Questionar esses elementos é fazer uma crítica da Ontologia sem, contudo, invalidar seu campo investigativo como quis muitos filósofos ao perceber o quão difícil era saber se existia esse fundamento ou se o homem poderia ter acesso a ele.
A questão da corporeidade está intimamente ligada a esses questionamentos. O estatuto cartesiano que separa a mente do corpo, radicalizando a dualidade platônica, concebe que teríamos acesso às coisas sem que tenhamos de nos deixar afetar fisicamente por elas. No entanto, enquanto seres corporificados no mundo, nada do que possamos racionalizar é concebido em nós sem que nosso corpo e nossa mundianidade participem. Logo, investigar as essências e fundamentos das coisas é inferir racionalmente como essas coisas, no mundo, nos afetam em suas aparições fenomênicas.
Por mais dualista que Platão se tornou posteriormente, a partir de A República, vemos que em sua fase socrática inicial ele nos mostra outro modo de funcionamento da mente; abstraindo das percepções físicas o que ele chama de “mundo inteligível”. Isto é, daquilo que parece se repetir no tempo, do que pode ser percebido de um ente em contato conosco é que extraímos o que pode caracteriza-lo: sua essência. Os acidentes mudam, mas é possível identificar na série de aparições do fenômeno aquele conjunto de atributos que, se reunidos, podem torna-lo inteligível em seu conceito. Isto é, conseguimos defini-lo.
O problema é que quando tomamos consciência dessa nossa capacidade de “definir”, “tornar algo inteligível”, “conceituar”, acabamos por abstrair o fato de que é a existência das coisas (e a forma como esse existência nos afeta) que nos mostra suas essências (como o próprio Sócrates nos mostra), e inferimos o caminho inverso; acreditando que é uma essência precedente que determina a existência. Esse salto que fazemos cognitivamente para mudar a direção epistemológica de conhecimento do mundo, se dá a meu ver, por um recurso retórico que chamamos de Analogia.
Se analogizarmos o mundo que está a nossa volta a partir das coisas que criamos, tudo o que percebemos partirá de um pressuposto que coloca a existência com um propósito definido por um ato voluntário e criativo. Isto é, supomos que o mundo se manifeste com o mesmo fundamento das coisas que estão mais próximas de nós: as coisas que criamos e desenvolvemos por um ato volitivo e intencional.
Parece-me que é da mente humana a necessidade de referenciar o que vê a partir daquilo que conhece. Se o processo evolutivo que fez emergir essa mente, num certo momento, fez com que pudéssemos resolver a maioria de nossos problemas existenciais (e a prova disso é o nosso domínio sobre o planeta), fez também com que o acesso a realidade se dê apenas por um processo associativo daquilo que já temos referência. Eis talvez a raiz da Teoria da Reminiscência Platônica e do discurso agostiniano no De Magistro.
De um lado temos então a imanência e a transcendência, evolucionismo e o criacionismo, a dialética e o determinismo. Somos criacionistas. A evolução darwinista nos fez assim. Curioso não é?

Na verdade, porém, não sabemos. Mas ao nos seduzirmos pela racionalidade e sua suposta exatidão na perscrutação do mundo, aceitamos essa tese como lógica, exata e absolutamente coerente; quando na verdade apenas retoricamente ajustamos nosso entendimento do mundo a partir de associações análogas daquilo que estão ao alcance de nosso olhar. Poderíamos chamar isso de indução ontológica? Poderíamos, mas o que interessa são as conseqüências práticas dessa indução.
É possível aventar que toda tradição que interpreta historicamente o mundo e inaugura sistemas de crenças, sistemas sociais e sistemas econômicos, tenham como base uma tendência essencializadora da mente humana que atribui um “dever-ser” intencional e propositado às coisas, cujos resultados cabem a nós fazer acontecer no mundo. Nós, antropicamente, tomados como ápice e propósito final da criação, somos os guardiões e executores desses propósitos, cujos fundamentos podem ser apenas fruto de uma simples analogia inocente que o homem fez para conhecer melhor aquilo que lhe cercava.
Logo, atribuir ao Criador as minhas próprias intencionalidades é, soberbamente, adequar o mundo ao que tomo como verdade; sem sequer sermos honestos com nós mesmos ao nos vermos temporais e finitos para saber o que uma suposta mente eterna e infinita possa ter como propósito.
As conseqüências práticas disso é nos vermos embrenhados numa sociedade cheia de deveres-ser essencialistas que nos fazem desempenhar papéis cujos fundamentos não podem mais ser abstraídos de suas existências fenomênicas. Tudo, carregados de sentidos a prioris e dados por tradição ou autoridade, bombardeia nossa existência impedindo que encontremos nossa própria forma de ser-no-mundo.

Mesmo que rejeitemos o sistema, que desconstruamos sua lógica perversa, que o critiquemos naquilo que ele desumaniza a todos; ainda sim assumimos seus pressupostos através da carga de significados e propósitos que o legitimiza como estética de ser-no-mundo. Essa estética, essa forma de ser, que vem da capacidade racional que separa a essência do fenômeno e a coloca como dada e moldadora da realidade, nos coloca estéril e legitimadores de toda uma série de acidentes que nos convenceram que faziam parte de nossa essência. A necessidade de saber, de ter respostas e de sentir-se confortável em ser algo (não importa o quê), faz com que assumamos o que querem que sejamos e não o que realmente queremos ser.
O problema é que ainda não sabemos o que queremos ser. E a angústia em se perceber sendo obrigado a ser o que não somos sem saber o que queremos ser, nos obriga a assumirmos os papéis que querem que desempenhemos; papéis vazios, sem significados, que nos tornam hipócritas.

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