terça-feira, 30 de setembro de 2008

Reflexões Metafísicas II

Ontologia, Epistemologia, Ética e Existência...

Percebo cada vez mais que a questão ontológica se entrelaça com a epistemológica toda vez que tendemos a questionar se aquilo que dizemos de uma coisa pode ter respaldo no que pode ser observado e vivenciado no contado com essa coisa.

Se a Ontologia se preocupa com o fundamento daquilo que percebemos como realidade, ela precisa se perguntar como, racionalmente, podemos ter acesso a esse fundamento para entende-lo, descreve-lo e conhece-lo. Precisa se perguntar se esse acesso também nos revelaria um propósito nas coisas ou se esse fundamento apenas caracteriza a coisa sem que seja possível, sem tomada de pressupostos, inferirmos propósitos ou objetivos a priori.

Questionar esses elementos é fazer uma crítica da Ontologia sem, contudo, invalidar seu campo investigativo como quis muitos filósofos ao perceber o quão difícil era saber se existia esse fundamento ou se o homem poderia ter acesso a ele.

A questão da corporeidade está intimamente ligada a esses questionamentos. O estatuto cartesiano que separa a mente do corpo, radicalizando a dualidade platônica, concebe que teríamos acesso às coisas sem que tenhamos de nos deixar afetar fisicamente por elas. No entanto, enquanto seres corporificados no mundo, nada do que possamos racionalizar é concebido em nós sem que nosso corpo e nossa mundianidade participem. Logo, investigar as essências e fundamentos das coisas é inferir racionalmente como essas coisas, no mundo, nos afetam em suas aparições fenomênicas.

Por mais dualista que Platão se tornou posteriormente, a partir de A República, vemos que em sua fase socrática inicial ele nos mostra outro modo de funcionamento da mente; abstraindo das percepções físicas o que ele chama de “mundo inteligível”. Isto é, daquilo que parece se repetir no tempo, do que pode ser percebido de um ente em contato conosco é que extraímos o que pode caracteriza-lo: sua essência. Os acidentes mudam, mas é possível identificar na série de aparições do fenômeno aquele conjunto de atributos que, se reunidos, podem torna-lo inteligível em seu conceito. Isto é, conseguimos defini-lo.

O problema é que quando tomamos consciência dessa nossa capacidade de “definir”, “tornar algo inteligível”, “conceituar”, acabamos por abstrair o fato de que é a existência das coisas (e a forma como esse existência nos afeta) que nos mostra suas essências (como o próprio Sócrates nos mostra), e inferimos o caminho inverso; acreditando que é uma essência precedente que determina a existência. Esse salto que fazemos cognitivamente para mudar a direção epistemológica de conhecimento do mundo, se dá a meu ver, por um recurso retórico que chamamos de Analogia.

Se analogizarmos o mundo que está a nossa volta a partir das coisas que criamos, tudo o que percebemos partirá de um pressuposto que coloca a existência com um propósito definido por um ato voluntário e criativo. Isto é, supomos que o mundo se manifeste com o mesmo fundamento das coisas que estão mais próximas de nós: as coisas que criamos e desenvolvemos por um ato volitivo e intencional.

Parece-me que é da mente humana a necessidade de referenciar o que vê a partir daquilo que conhece. Se o processo evolutivo que fez emergir essa mente, num certo momento, fez com que pudéssemos resolver a maioria de nossos problemas existenciais (e a prova disso é o nosso domínio sobre o planeta), fez também com que o acesso a realidade se dê apenas por um processo associativo daquilo que já temos referência. Eis talvez a raiz da Teoria da Reminiscência Platônica e do discurso agostiniano no De Magistro.

De um lado temos então a imanência e a transcendência, evolucionismo e o criacionismo, a dialética e o determinismo. Somos criacionistas. A evolução darwinista nos fez assim. Curioso não é?

Se nossa referência do surgimento das coisas parte da percepção de que as coisas que estão ao alcance de minha mão foram fruto de uma criação volitiva e intencional, infiro que tudo o que está além dessas coisas, no mundo dado desde que surgi, tenham um mesmo fundamento; isto é, foram criadas por uma mente intencional e volitiva com um propósito definido e direcionado. E ainda, se me percebo nesse mundo, como um ente que participa dessa mundianidade, logo também fui criado com um propósito intencional e direcionado para alguma coisa.

Na verdade, porém, não sabemos. Mas ao nos seduzirmos pela racionalidade e sua suposta exatidão na perscrutação do mundo, aceitamos essa tese como lógica, exata e absolutamente coerente; quando na verdade apenas retoricamente ajustamos nosso entendimento do mundo a partir de associações análogas daquilo que estão ao alcance de nosso olhar. Poderíamos chamar isso de indução ontológica? Poderíamos, mas o que interessa são as conseqüências práticas dessa indução.

É possível aventar que toda tradição que interpreta historicamente o mundo e inaugura sistemas de crenças, sistemas sociais e sistemas econômicos, tenham como base uma tendência essencializadora da mente humana que atribui um “dever-ser” intencional e propositado às coisas, cujos resultados cabem a nós fazer acontecer no mundo. Nós, antropicamente, tomados como ápice e propósito final da criação, somos os guardiões e executores desses propósitos, cujos fundamentos podem ser apenas fruto de uma simples analogia inocente que o homem fez para conhecer melhor aquilo que lhe cercava.

Logo, atribuir ao Criador as minhas próprias intencionalidades é, soberbamente, adequar o mundo ao que tomo como verdade; sem sequer sermos honestos com nós mesmos ao nos vermos temporais e finitos para saber o que uma suposta mente eterna e infinita possa ter como propósito.

As conseqüências práticas disso é nos vermos embrenhados numa sociedade cheia de deveres-ser essencialistas que nos fazem desempenhar papéis cujos fundamentos não podem mais ser abstraídos de suas existências fenomênicas. Tudo, carregados de sentidos a prioris e dados por tradição ou autoridade, bombardeia nossa existência impedindo que encontremos nossa própria forma de ser-no-mundo.

E vamos nós, aqui e acolá, desempenhando papéis como um grande Show de Trumam; como coadjuvantes de um Reality Show cujos protagonistas detém o poder sobre nós: uma casta de seres acima do bem e do mal que assumiram-se como demiurgos da humanidade para a manutenção de um sistema tomado fisiocraticamente; definido por um propósito acima da vontade coletiva humana: o capitalismo.

Mesmo que rejeitemos o sistema, que desconstruamos sua lógica perversa, que o critiquemos naquilo que ele desumaniza a todos; ainda sim assumimos seus pressupostos através da carga de significados e propósitos que o legitimiza como estética de ser-no-mundo. Essa estética, essa forma de ser, que vem da capacidade racional que separa a essência do fenômeno e a coloca como dada e moldadora da realidade, nos coloca estéril e legitimadores de toda uma série de acidentes que nos convenceram que faziam parte de nossa essência. A necessidade de saber, de ter respostas e de sentir-se confortável em ser algo (não importa o quê), faz com que assumamos o que querem que sejamos e não o que realmente queremos ser.

O problema é que ainda não sabemos o que queremos ser. E a angústia em se perceber sendo obrigado a ser o que não somos sem saber o que queremos ser, nos obriga a assumirmos os papéis que querem que desempenhemos; papéis vazios, sem significados, que nos tornam hipócritas.

Saber-se com a possibilidade de uma essência que não seja pré-determinada, é nos condenarmos à liberdade de nos construirmos como seres. E isso nos traz uma responsabilidade indigesta em que nos vemos sem desculpas para agir como agimos; nos obrigando a criar sentidos que legitimizem nossas ações. Os velhos sentidos já não satisfazem mais, e não existem novos. Temos que cria-los. Ou os criamos, na alteridade, na coletividade de um agir comunicativo habbermasiano; na extrema sinceridade de nos re-corporificarmos, ou nos entregamos a um nihilismo sem volta, onde a barbárie esteja à espreita para espraiar-se nas possibilidades existenciais do mundo.

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