quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

Contestando papéis

"Marianne, olhando-se nos próprios olhos diante de um espelho — menos para se ver e mais para refletir sobre si mesma — fala em voz alta: 'Pensem o que quiserem. Quanto mais vocês acreditam poder falar de mim, mais eu serei livre em relação a vocês. Às vezes, me parece que as novidades que aprendemos sobre as pessoas perdem logo o valor. No futuro, se qualquer um me explicar como eu sou — seja para me fragilizar ou para me tornar mais forte — eu não admitirei mais uma tal insolência'" Peter Handke.(1)

Esse ato de rebeldia da personagem do romance de Handke parece resumir o que toda mulher busca quando olha a si mesma e quer libertar-se dos papéis impostos a elas pela sociedade, nós homens e mesmo outras mulheres.

No entanto, essa é uma questão que transcende o feminismo e se instaura na pôs-modernidade quando se desconstrói as estruturas fixas e determinantes que até então nos disseram quem somos e para o que existimos. E quem pode nos dizer tais coisas?

A modernidade inaugura o caminho solitário da auto-descoberta, mas mesmo assim, a todo o tempo, individualizados e solitários, somos determinados por olhares moralizadores que ora nos colocam dentro e ora nos colocam fora dos parâmetros tomados pelo senso comum. Esse caminho solitário, porém, é dialogado, compartilhado e burilado a cada contato com o outro.

Dizer que somos o que vemos na medida que o outro nos dá em sua relação conosco, ou mesmo dizer que nos fazemos na alteridade, não significa em instância alguma nos deixar determinar por aquilo que os outros exclui ou acrescenta em nós em seus preconceitos e históricos existenciais. Deixar-nos determinar dessa forma não é ter na alteridade a ferramenta de auto-conhecimento, é tê-la como forja daquilo que podemos ser. Nada, nem ninguém, fora nós mesmos, tem o poder e a responsabilidade de nos construir.

A construção é dolorosa e solitária, embora feita na alteridade. Começa por nos vermos inacabados enquanto seres, e estabelece seu modus operandis no desenvolvimento de uma força interna e auto-motivada para a luta contínua pela indeterminação externa voluntária e na luta contínua pela auto-determinação na medida de nossa relação com o outro.


É a rebeldia de Marianne. É o ato subversivo de contestação dos papéis sociais impostos, dos roteiros prontos da cultura falocêntrica do capital. Embora nós, homens, sejamos intrinsecamente porta-vozes dessa cultura de submissão e exploração do outro, alguns de nós percebe de longa data o esgotamento epistemológico e ético desse modelo anacrônico e fatídico que ainda nos inserimos. Somos todos (homens, mulheres e transgêneros) como Marianne de Handke e nadamos juntos nesse mar de insatisfação. Só não admitiremos mais essas insolências quando nadarmos todos na mesma direção, mesmo de forma plural e diversificada além de todos os gêneros.

Se Engels acertou quando disse que a exploração e a opressão do homem pelo homem começam na exploração e opressão da mulher pelo homem (2), arrisco a dizer que a erradicação da opressão e a exploração devam começar pela emancipação total da mulher, resgatando-a como sujeito histórico e não determinando seu papel na sociedade por extrapolações falocêntricas que defina seu gênero pela diferença sexual entre nós. Esse seria o primeiro passo ruma a liberdade de fato, pois libertar está acima do emancipar; está acima até de uma categorização de Sujeitos Históricos.

Só faz algum nexo esse tipo de extrapolação se concebermos uma natureza fixa e essencial a partir de um pensamento teleológico que, embora de pretensão científica, está na contramão da cientificidade desde que Darwin derrubou os postulados de Lamarck a pelo menos 150 anos. Se a natureza é heraclitianamente contingencial e trabalha na expressividade dos seres vivos a partir de uma variabilidade necessária dentro das espécies, a falácia do binômio gênero/sexo se circunscreve exatamente no terreno em que deveria estar: no das falácias.

Que o diálogo faça parte da construção dos sentidos sociais que devamos viver e que, se devemos desempenhar algum papel, que seja aquele diretamente ligado à nossa vocação e não determinado por estruturas que universalizam sujeitos a partir de inferências de essências fixas e eternas.

E de acordo com Marianne, o primeiro diálogo a ser feito é conosco mesmo; olhando em nossos próprios olhos e protestando contra a insolência de quem pretende explicar quem somos fora daquilo que sentimos e pensamos.


Referências Bibliográficas

(1) HANDKE, Peter. A Mulher Canhota. São Paulo: Brasiliense, 1985. p. 34-35.

(2) ENGELS, F. A Origem da família, da propriedade privada e do Estado. Rio de Janeiro, RJ: Civilização Brasileira, 1974.

3 comentários:

Vereda da mente disse...

Tombamento de consciência by Miranda

Tá tudo se movendo.
Não existe mais nada fixo em mim.
Minha percepção das coisas está mudando e com ela meus valores também.
Estou em plena revolução.Sinto que estou evoluindo da idade média pessoal.
Os inquisidores estão perplexos,seguros que o mal existe nesta pessoa que vos escreve...
Mas minha imagem(ou como me descubro agora)não é fixa...e desapareço debaixo daqueles narizes cheio de pelos e buracos imensos que mal suportam o próprio cheiro.
Sou prato cheio pra qualquer moralista que traz nos suspensórios verdades perenes.

Gilberto Miranda Jr. disse...

Puxa que lindo isso, Vereda. Parabéns. E você tem feito isso atraves desse diálogo interno? Parece-me que é ele que nos faz mudar, e é justamente isso que os inquisidores rejeitam, pois precisam de coisas fixas, estáveis para poder controlar e oprimir. O que muda, para eles, é uma ameaça ao seus podres poderes...

Muito obrigado por sua participação no Blog, me honra muito....

Vereda da mente disse...

Miranda,devo dizer que ver tua aula no Youtoub,ajudou muito,por isso o "by Miranda".
Vc é um descobridor de universos internos e eu tenho uma capacidade de abstração razoável.
Mas estou passando por isso a algum tempo,só que estava presa em algum lugar entre a fúria e a libido,rs
Obrigada professor!
(vou te encher muito ainda...rs)

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