sábado, 13 de fevereiro de 2010

Acaso, Aleatoriedade e Propósito (Parte 1)

Um dos grandes problemas epistemológicos que a teologia enfrenta ao analisarmos filosoficamente a relação humana com o divino é: até que ponto é atribuído a Deus as características que o homem precisa atribuir a si mesmo ou que as tomam a partir da necessidade de aspirar-se a uma determinada forma de ser? Outra questão importante também é: até que ponto o homem tem acesso a uma suposta natureza divina para postulá-la em suas características e poder construir discursos sobre ela? E por último, como deve ser classificado esse discurso diante da dúvida iminente sobre se o homem teria as propriedades e competências epistêmicas para construir um discurso sobre o divino e sua natureza? As três indagações se interpenetram e fazem um télos próprio que torna insustentável certos argumento que tentam se fazer de científicos, mas caem no puro proselitismo religioso.

mao_de_deusDessa forma, o grande problema no “raciocínio” dos postulantes ao Design Inteligente (doutrina criacionista dissimulada em pseudociência) é confundir uma teleonomia verificada em um sistema organizado e complexo, consumidor de energia, com um projeto prévio e intencional de origem divina. Antes disso, porém, esse projeto postula-se ligado por um princípio conseqüente de uma idéia sobre como Deus ou essa Inteligência deva agir e ser: conhecimento tal que é preciso revestir-se de uma arrogância sem limites para postular.

Ou seja, problematizo aqui não só a conexão necessária entre teleonomia1a e projeto intencional, como também a petição de princípio de um conhecimento não justificado da natureza e forma de agir de uma suposta força inteligente (Deus) que o ser humano dificilmente teria acesso ou cognoscibilidade.

Essas petições não têm estatuto científico, tampouco se baseiam em uma heurística que se possa considerar epistemicamente virtuosa, pois se tratam em todas as instâncias possíveis de um salto de fé com intuito de conferir sentido a uma ignorância provavelmente eterna para os seres humanos. Mesmo que não possamos defini-la como “eterna”, há de se escolher um método de aproximação (heurística2) que afaste de todas as formas as petições de princípios não verificáveis. Por outro lado, decorre desse “salto” a propalada suposta evidência à frente de conceitos criacionistas famosos como: Complexidade Irredutível e Complexidade Especificada.

Não decorre do conceito de teleonomia qualquer noção necessariamente ligada a um princípio finalístico em um processo qualquer. Uma estrutura teleonômica não pressupõe um princípio teleológico (tomado em seu sentido popular e também equivocado; eivado de finalismos). É preciso deixar isso bem claro. No entanto os defensores do DI insistem nessa ligação. Bastaria, portanto, falsear essa hipótese de conexão necessária a partir de contra-exemplos que pudessem colocá-la em dúvida. A questão a ser levantada é se a produção de algo necessariamente implica em um projeto prévio ou se um processo pode ser produtor, enquanto ocorre, de um télos, sem uma intencionalidade específica anterior.

Rational O fato de a racionalidade ter como uma de suas categorias de entendimento o recurso da comparação, não significa que toda e qualquer comparação (por exemplo, uma analogia), encerre e determine a natureza de algo. O homem, tomando a si próprio como referência, infere que as coisas do mundo obedeçam a um projeto, porém o faz por analogia às coisas que ele próprio (homem) produz. Esse raciocínio não sustenta a si próprio, pois parte de uma petição de princípio que postula a necessidade de um SER análogo ao homem produzindo a natureza da mesma forma como as coisas que o homem produz.

Duas possibilidades se abrem a partir disso: – nem tudo que o homem produz o faz a partir de um propósito prévio e uma finalidade específica. Podemos cunhar inúmeros exemplos de produção reativa e/ou fortuita (sem propósito) que se perfaz na medida em que é feita, quase que por inércia, sem direção e cujo propósito se constrói ao longo do próprio fazer despropositado e apenas reativo inicialmente. Se Deus é análogo ao homem, ou vice-versa, o que nos levaria a crer que as coisas da natureza (admitindo-as criadas por Deus) tenha a necessidade de obedecer a um propósito ou desígnio prévio? – o que nos indica que as coisas da natureza sejam, necessariamente análogas às coisas que os homens fazem? Por qual motivo é preciso estabelecer que se o homem cria as coisas para uma função específica, tudo o que existe possui uma função e propósito?

Não há, a princípio, qualquer problema em postular como cosmovisão essas idéias. Elas podem fazer parte de um aspecto heurístico de “hipótese de trabalho”, mas é preciso justificá-la dentro de sua possibilidade de demonstração e falseamento. Essa possibilidade deixa de existir na medida em que se baseia em um aspecto mitológico e não falseável, que podemos ler em Gênesis I-26 e 27:

26. Então Deus disse: "Façamos o homem à nossa imagem e semelhança. Que ele reine sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus, sobre os animais domésticos e sobre toda a terra, e sobre todos os répteis que se arrastem sobre a terra."

27. Deus criou o homem à sua imagem; criou-o à imagem de Deus, criou o homem e a mulher.

É preciso salientar aqui que quando afirmo ser um aspecto mitológico, não estou querendo dizer com isso que seja falso, mas afirmando que não tem como ser falseado. Esse é o ponto. Penso, como muitos pensadores da mitologia, como Joseph Campbell, por exemplo, que as narrativas míticas encerrem verdades fundamentais. Porém, longe de serem históricas, essas verdades encerram-se de forma psicológica e é preciso interpretá-las por esse viés, ao invés de tomá-las de forma literal. O que o patriarca queria dizer ao certo sobre uma criação a imagem e semelhança? Eis uma indagação que não faz parte da especulação de fundo teológico.

Postular um só tipo de interpretação, baseado apenas na fé, não é eleger uma hipótese de trabalho (aspecto heurístico) para uma busca científica. É simplesmente assumir uma petição de princípio (cosmovisão) e direcionar o sentido do que vemos a revelar apenas o que queremos ver. Isso se encaixa no magistério científico? De certo que não.

deus Portanto, a partir do momento em que essa postulação invade um magistério que se respalda por evidências empíricas (a ciência), ela precisa cercar-se das garantias que caracterizam o magistério invadido, sem o que não pode solicitar ser reconhecida fora de seu estatuto. Esse é o grande problema da idéia do DI e do Criacionismo: solicitar um estatuto científico sem cumprir as exigências do respectivo magistério que invade. E pior, dissimulando o que está de fato em jogo, denigre e tenta destruir o magistério invadido para se encaixar a fórceps sem que seja necessário expor-se em suas incongruências. Isso engana os incautos, mas quem estuda e é do meio simplesmente desdenha e se decepciona pelos meios pouco honestos intelectualmente usados nessa empreitada ideológica.

Qualquer linha de pensamento que pretenda o estatuto científico terá que trazer em sua estrutura discursiva a possibilidade de formulação de hipóteses tais que possam ser submetidas a testes refutativos e não somente verificativos. A ciência, enquanto atividade que precisa conferir objetividade às suas afirmações, jamais poderá abrir mão dessa sistemática pela qual todo método científico é erigido.

Eis, enfim, os motivos principais pelos quais o DI e o Criacionismo não despertam o interesse da comunidade científica, embora a falta de compreensão desses conceitos (ou mesmo por pura má-intencionalidade dos criacionistas) prefiram dizer que haja complôs e conspirações darwinistas e ateístas contra suas idéias.

Nos próximos artigos procurarei argumentar sobre um dos pilares do Criacionismo e da idéia do Desígnio Inteligente, mostrando que a idéia de uma teleonomia estrutural, também chamada de Complexidade Irredutível ou Complexidade Especificada não é decorrente, necessariamente, de qualquer planejamento prévio ou propósito finalístico. Falarei também sobre aleatoriedade e do acaso, conceitos usados como excludentes de uma suposta ação de um SER onipotente responsável pela criação do mundo no ideário religioso. Indagarei sobre a origem da idéia de um SER que necessita, aos olhos dos religiosos, dar sentido ao mundo, sendo Ele absoluto, e como essa idéia não se sustenta, pois parte de uma profunda soberba humana que se arroga conhecedora da natureza de um Ser que preconizam ser absoluto, onisciente e onipotente.

Para finalizar essa primeira aproximação, recomendo a leitura dos ótimos artigos do blogueiro Arnaldo Vasconcellos em seu ótimo blog Análise da Ciência:

- A Suspensão de Juízo como Heurística;

- A Heurística da Suspensão é mais uma Cosmovisão?

 

Notas Explicativas Importantes

1 – Teleologia: Refere-se ao estudo ou conhecimento do Télos. Télos refere-se, em geral, a um fim, meta, finalidade específica e dada por um impulso inicial intencional e direcionado. A discussão sobre esse conceito é extensa e a intenção é tentar resumi-la em seus aspectos fundamentais, sem perder em sua amplitude.

Embora seja tomado muitas vezes como FIM, meta, finalidade, o conceito de Télos vai além disso. A tomada dessa palavra como fim de uma intenção direcionada previamente encerra apenas uma possibilidade perspectiva. É isso que os criacionistas não entendem. Para eles, tomando como pressuposto a existência de um SER que faz o mundo porque tem um propósito definido para ele (mesmo que esse propósito não seja passível de cognoscibilidade humana), Télos se constitui na meta e funcionalidade programada previamente para o mundo e os homens.

No entanto, o sentido dessa palavra não se perde se retirarmos de seu conceito a pressuposição de uma intencionalidade diretora prévia e tampouco se perde se retiramos uma conclusão final de resolução ou resultado. Um Télos, existindo, pode se cumprir ou se fazer dentro da própria existência e não temos razões lógicas para pressupor que ele só se cumpra ou se faça mediante a um impulso intencional e planejado anterior e se encerre a partir de um resultado final, seja escatológico ou soteriológico, como nos preconiza o pensamento religioso.

Para dar conta dessa idéia falarei nos artigos posteriores de complexidade, estruturas emergentes e outros conceitos que dispensam o caráter de desígnio, sem negar o Télos em seu aspecto teleonômico.

Para reforçar essa idéia recorro-me à Emmanuel Carneiro Leão e a Martin Heidegger:

“o que finaliza, no sentido de levar à plenitude, o que, em grego, se diz com a palavra télos. Com muita freqüência, traduz-se télos por "fim", entendido como meta, e também por "finalidade", entendida como propósito, interpretando-se mal essa palavra grega" (HEIDEGGER 2002, p.14)

"A integração de penhor e bem constitui e perfaz o sentido, ‘tò télos’, do empenho na dinâmica da ação. Costuma-se traduzir télos por meta, fim, finalidade. Todavia, télos não diz nem a meta a que dirige a ação nem o fim em que a ação finda, nem a finalidade a que serve a ação. Télos é o sentido, enquanto sentido implica princípio de desenvolvimento, vigor de vida, plenitude de estruturação. Assim o télos, o sentido de toda ação, é consumar a atitude, é o sumo desenvolvimento do vigor de sua plenitude. Atitude, como a consumação de todos os sentidos das ações, ‘to teleio taton’, é pois, a perfeita integração de penhor e bem" (LEÃO 1992, p. 156)

Télos como sentido, nos aproxima de outro conceito, que Jacques Monod nos traz em seu livro O Acaso e a Necessidade: a TELEONOMIA.

1a. Teleonomia: Monod define esse termo como o resultado de núcleos de invariância capazes de manter o acaso no mecanismo evolutivo. Segundo ele:

“É o aparelho teleonômico, tal como funciona quando se exprime pela primeira vez uma mutação, que define as condições iniciais essenciais da admissão, temporária ou definitiva, ou da rejeição da tentativa nascida do acaso.” (MONOD 2006, p. 121)

2 – Heurística: Refere-se à parte da ciência que tem por objeto a pesquisa e descoberta dos fatos (Houaiss, 2007). Do grego [ευρίσκω, euriskern – não confundir com erística]: significa “descobrir”, “encontrar” ou, segundo Abbagnano “arte de pesquisa” (ABBAGNANO 1998, p. 499)

“Que serve para a descoberta; diz-se especialmente: 1º de uma hipótese de que se procura saber se é verdadeira ou falsa, mas que se adota apenas a título provisório, com idéia diretriz na investigação dos fatos; é muito usada neste sentido também na França a expressão inglesa ‘working hypothesis’; 2º do método pedagógico que consiste em fazer que o aluno descubra aquilo que se pretende ensinar-lhe.” (LALANDE 1999, p. 462)

“a. Que se refere à descoberta e serve de idéia diretriz numa pesquisa, de enunciação das condições da descoberta científica.

b. Diz-se que um método é heurístico quando leva o aluno a descobrir aquilo que se pretende que ele aprenda: a maiêutica socrática é, por excelência, um método heurístico. “ (MARCONDES e JUPIASSU 2001, p. 92)

Todas essas considerações abrem uma espaço epistêmico muito importante, pois podemos preconizar aspectos teleológicos criados contingencialmente, sem qualquer necessidade lógica (e denunciando assim as necessidades ideológicas) de pressupor finalismos, propósitos ou desígnios que são insustentáveis.

Alerta importantíssimo: postular a insustentabilidade de pressupostos de desígnios em uma possível teleologia, não é postular a inexistência de Deus nem tampouco assumir uma perspectiva ateísta. Simplesmente se trata de questionar a soberba de se arrogar conhecedor da natureza divina e de suas intencionalidades para ler a evidência teleológica como um desígnio de natureza transcendental.

Portanto, aos criacionistas que quiserem se opor ao que está escrito aqui, foquem-se naquilo que está sendo dito e como está sendo dito, poupando-nos o precioso tempo de reflexões que valham a pena.

Trabalharei na continuidade dessas reflexões naquilo que me propus e anunciei e logo voltarei a publicar.

 

Referências Bibliográficas

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia - Verbete "HEURÍSTICA". 21ª Edição. Tradução: Alfredo Bosi. Vol. III. 5 vols. São Paulo, SP: Martins Fontes, 1998.

HEIDEGGER, Martin. Ensaios e conferências. Petrópolis, RJ: Vozes, 2002.

LALANDE, André. Vocabulário Técnico e Crítico da Filosofia - Verbete "HEURÍSTICA / HEURÍSTICO". 3ª Edição. Tradução: Fátima Sá Correia. São Paulo, SP: Martins Fontes, 1999.

LEÃO, Emmanuel Carneiro. Aprendendo e pensar II. Petrópolis, RJ: Vozes, 1992.

MARCONDES, Danilo, e Hilton JUPIASSU. Dicionário Básico de Filosofia. Edição: Jorge Zahar. Rio de Janeiro, RJ, 2001.

MONOD, Jacques. O Acaso e a Necessidade. 6ª Edição. Tradução: Bruno Palma e Pedro Paulo de S. Madureira. Petrópolis, RJ: Vozes, 2006.

9 comentários:

Arnaldo disse...

Olá Gilberto?

É interessante notar que mesmo apresentando as questões sobre o quanto podemos conhecer a Deus, o quanto de nossas características atribuímos a Ele etc o Design Inteligente é tomado, por seus divulgadores, como uma teoria científica (mesmo que estejam esbarrando nestes problemas).
Os defensores do DI baseiam suas reflexões deliberadamente com o que é encontrado na bíblia, deixando um possível processo heurístico de lado.
Quando fazem desta forma, eles acreditam que na bíblia está escrito o que é verdade e portanto é um pressuposto para eles que teorias devam estar de acordo com a mesma. E para eles isto não seria um problema.
Mas isto é um problema sério, pois ao mesmo tempo que o fazem isso, eles querem a garantia de que a teoria é científica. O que passa a ser uma requisição de garantia social da ciência (e isso não a faz ser uma teoria científica de fato).
Por este motivo cito, concordando, com as suas palavras:
"Qualquer linha de pensamento que pretenda o estatuto científico terá que trazer em sua estrutura discursiva a possibilidade de formulação de hipóteses tais que possam ser submetidas a testes refutativos e não somente verificativos. A ciência, enquanto atividade que precisa conferir objetividade às suas afirmações, jamais poderá abrir mão dessa sistemática pela qual todo método científico é erigido.
Eis, enfim, os motivos principais pelos quais o DI e o Criacionismo não despertam o interesse da comunidade científica, embora a falta de compreensão desses conceitos (ou mesmo por pura má-intencionalidade dos criacionistas) prefiram dizer que haja complôs e conspirações darwinistas e ateístas contra suas idéias."

Gostei de seu artigo. Parabéns.
Também gostaria de agradecer seus comentários sobre o blog.

Abraços,

Arnaldo.

Angelillo disse...

(disculpa, comencé en portugués, pero es demasiado texto, y me he visto obligado a utilizar mi lengua)

Hola, por fin tengo tiempo para escribir aquí más calmadamente. El problema que planteas lo responden muchos teólogos españoles (católicos) afirmando:
- El discurso epistemológico reduce la experiencia vital humana, y por lo tanto, no basta para responder a este tipo de preguntas.
- El principio de economía de pensamiento (navaja de Occam) no es válido para afirmar o negar este tipo de cuestiones como el tema de la teleonomía o posible teleología en el orden de la creación. La heurística necesaria para el discurso epistemológico, es rechazado por irrelevante.
- Por lo tanto, a ellos les bastaría como un remoto "posible" la realidad de una teleología encubierta en la creación.

En fin, eso les basta para ellos. A mí no me convence. Y efectivamente, tienes razón en que el hombre muchas veces produce cosas de forma teleonómica. O como decía también Hume en su crítica al argumento teleológico, no será que estamos realizando analogías erróneas entre el hombre y la naturaleza?

Tengo que leer los links que mandas de Vasconcellos. Y por cierto, tengo otra duda, los libros que comentas en otros post de Gil, corresponden al mismo autor de "Portugal como Problema"?

Un saludo!

Atanásio Mykonios disse...

oi gilberto

as três perguntas que você formula são extremamente significante. são perguntas cuja profundidade nos colocam diante da verdadeira atitude filosófica que, ao meu ver, se transformou no séxulo XX...
não podemos mais imaginar que os princípios da filosofia permaneçam os mesmos, pois você está colocando a questão primordial da liberdade de pensar e refletir, que a meu ver, na atualide é tão importante quanto as definições anteriores, como a de que a filosofia deve ir em busca dos primeiros princípios, etc., sempre numa atitude teológico-metafísica, herança da atitude reigiosa...
para além do mérito das conclusões, as três perguntas ensejam um modelo de reflexão que é, substancialmente, autônomo... e se pensarmos que 40% dos cursos de graduação de filosofia estão ñas mãos da igreja e do catolicismo, no brasil, então, ainda estamos longe de uma perspectiva de liberdade no pensamento...
parabéns!
vou terminar de ler e depois conversamos
um abraço

Gilberto Miranda Jr. disse...

Prezado Arnaldo

Concordo com você, meu amigo. Os chamados tedeístas (adeptos da Teoria do Design Inteligente e que não tem nada a ver com deístas ou simples teístas), possuem uma heurística, de certo. Assim como toda atividade racional humana que visa um objetivo (incluindo aí até a arte) tem sua heurística própria. O problema sempre será querer torná-la não só única, como usar daquilo que não pode sequer demonstrar para colocar em dúvida as outras.

Os adeptos do DI, na verdade, dissimulam e raramente citam a bíblica, como os criacionistas tradicionais. Muitos até protestam quando os chamamos de criacionistas RS... Mas de todos que já conversei ou li seus escritos, o que fica é apenas um criacionismo enrustido e propositalmente dissimulado.

Na continuidade dessa série de artigos eu trarei algumas análises do raciocínio tedeísta. Você verá que, embora eles se centrem muito mais em uma crítica do que eles acreditam estar equivocado nos postulados da TE, muito do que eles criticam demonstra apenas uma falta de conhecimento ou mesmo deturpação do entendimento correto da Teoria da Evolução. São tergiversações em cima de tergiversações. Por sua vez, quando pensam que conseguiram criticar de maneira a desacreditar a TE, partem para encaixar seus dogmas como verdade evidente e única possível, mas nunca oferecem meios de suas afirmações serem testadas ou estarem alinhadas aos critérios de falseabilidade.

Eu penso até que eles teriam muito à contribuir com a ciência. Ciência nasce da dúvida e da crítica. Enquanto eles quiserem empurrar suas certezas sem oferecer condições de testabilidade, não estarão fazendo ciências, por mais que esperneiem. Nesse ponto específico não há como discordar de você quando você aborda em seu blog a questão da garantia social que a ciência confere. Eu só não entendo como eles conseguiriam essa garantia trabalhando de forma a desacreditar o conhecimento científico em prol de suas crenças. É algo meio paradoxal isso, não é? Coisas da religião RS...

Agradeço sua participação, espero que a segunda parte desse pequeno estudo também te agrade.

Abraços

Gilberto Miranda Jr. disse...

Angelillo

Meu caro amigo desde Espanha. Grande abraço. Não se preocupe com a linguagem, com certeza nos entenderemos.

Essencialmente eu até concordo com as respostas dadas pelos teólogos espanhóis que você transcreve aqui. Eles não estão errados a meu ver. Eu até ampliaria essa resposta. Por exemplo, eu questiono veementemente se qualquer discurso humano daria conta, isoladamente, da experiência vital humana em toda sua amplitude. De certo que não. A necessidade da arte, a meu ver, se encaixa totalmente nessa carência lingüística e expressiva de traduzir a nossa totalidade. E isso é lindo. Traz um encanto constante para o mundo e nossa relação com ele, mesmo com todos os desencantos úteis que a ciência e a filosofia nos trazem.

Também concordo que a Navalha de Ockham não seja universalmente a melhor forma, em todas as ocasiões, de abordagem heurística. Tudo o que usamos para abordar heuristicamente um problema precisa estar alinhado à amplitude do problema e das respostas que queremos buscar, antes disso, está envolvido o “para quê” queremos uma determinada resposta. A Navalha de Ockham é apenas uma entre tantas abordagens possíveis de aproximação das soluções que desejamos.

O único problema que coloco na questão das abordagens é o perigo de tomarmos um pressuposto como “lente” ou “filtro” daquilo que estamos vendo, abrindo mão de usá-lo como hipótese de trabalho a ser rejeitada se não nos responder diante dos objetivos que nos propusemos. Nenhum pressuposto vale por si mesmo se não estiver inserido em um contexto maior e justificado em relação a ele. Quando falamos de teleologia ou teleonomia no contexto filosófico-científico, o problema está na acessibilidade do postulado de que haja um sentido único ou determinado para as coisas serem como são. Se a justificação desse postulado não é acessível, a postura mais indicada é de suspensão de juízo, mesmo que temporária.

Também não discordo da “remota possibilidade” de uma teleologia encoberta no surgimento da vida. O que está em jogo é justamente qual seria a melhor heurística para “desencobrir” essa remota possibilidade e transformá-la em uma possibilidade provável ou demonstrável.

E é por isso que tanto para você quanto para mim, isso tudo não nos convence. Precisamos de mais, mesmo que jamais tenhamos acesso. Parece-me que não buscamos conforto, embora possamos nos confortar fora do magistério filosófico-científico da maneira que melhor nos convier. Dentro dele, o desconforto e o incômodo é que nos move. Como nos movimentar e conhecer no conforto? Hume foi perfeito em seu ceticismo radical. Nos abriu realmente os olhos para coisas que fazemos com intuito de conhecer, mas sem abrir mão do conforto. As analogias são um exemplo claro e que Platão usou às expensas.

Sobre José Gil, não tenho referência de que ele seja autor de “Portugal como Problema”. Mas ele escreveu um livro que é Best-seller que se chama “Portugal Hoje: O Medo de Existir”.

Abraços, amigo...

Gilberto Miranda Jr. disse...

Meu prezado mestre Grego,

Refleti sobre o que você me escreveu e trago aqui um trecho da continuidade desse estudo que publicarei em breve:

“Vale salientar aqui que a palavra “Metafísica” pela qual ficou conhecida uma das obras de Aristóteles onde consta essa Teoria se refere aos escritos do estagirita organizado por Andrônico de Rodes no ano 50 d.C. que se classificaram após os escritos de Física. Nada, porém, a ver com a intenção de direcionar seu conteúdo à tentativa religiosa de aproximar a filosofia grega à teologia cristã. A manipulação, da qual nos fala no prefácio o tradutor da edição da EDIPRO, não está somente em seu conteúdo, mas no próprio sentido que o nome dado tomou ao longo do tempo. Bini nos diz:

“(...) não devemos esquecer que a Metafísica foi a obra aristotélica mais ‘manipulada’ (em todas as acepções desta palavra) durante mais de um milênio a partir do primeiro século da era cristã.” (Bini 2006, p. 12)

O que se nota é que o termo Metafísica significou, a partir da apropriação da igreja dos escritos de Aristóteles, a confirmação de uma Causa Final teleológica que confirmasse e, de acordo com a política tertuliana, conciliasse a filosofia grega com a teologia cristã, não importando o quanto fosse necessário descaracterizar o pensamento original do estagirita. Não sejamos ingênuos em pensar, muito menos postular, que não exista elementos no pensamento de Aristóteles que se encaixem como uma luva às intenções teleológicas escatológicas e soteriológicas cristãs. Mas não podemos ficar indiferentes à manipulação evidente que encobriu dissimuladamente os pontos divergentes ou que pudessem ser usado contra os dogmas religiosos.

De qualquer forma Aristóteles nunca usou o termo “Metafísica”. Ele fala nos livros que compõe o que foi reunido sobre esse nome em Filosofia Primeira, ou Filosofia das Causas Primeiras, e dentre ela destaca a existência de uma causa eficiente, que cumpre uma teleologia própria, digamos teleonômica, mesmo que em seu pensamento ela esteja inserida numa teleologia maior a partir do que chamou de Motor Imóvel ou Ato Puro (que engendra uma causa final ou propósito ao mundo).

Por Causa Eficiente Aristóteles quis discorrer sobre aquilo de que provém a mudança e o vir-a-ser. Ou seja, leis de causalidade que explicassem a mudança e a transformação. Se essas mudanças compusessem um propósito, o estudo desse propósito entraria na questão da Causa Final e não da Eficiente.

O que vale para nosso presente estudo é postular que, independente de uma Causa Final, um propósito ou um desígnio, há uma Causa Eficiente que dispensa um determinismo anterior à sua ação e processo constitutivo, e tampouco necessita de um agente externo para direcioná-la. Se houver um propósito cósmico universal ou um télos globalizado, sua atuação não se dá na singularidade como nos preconiza Behe e seus correligionários. Quiçá se dê de alguma forma.

Mas vamos mais fundo, mesmo dentro das limitações desse estudo. Se Causa Final diz respeito, ainda recorrendo a Aristóteles, a “um fim ou a um objetivo para qual tende o devir do homem” (REALE e Antiseri 1990, p. 181), esse fim, funcionalidade ou objetivo, nada nos indica (se não aceitarmos os pressupostos aristotélicos – polêmicos e repletos de petições de princípios) que essa finalidade ou funcionalidade não possa ser dada ou configurada no próprio devir, na própria eficiência do vir-a-ser, dando como resultado não uma relação de necessidade, mas meramente de suficiência. Essa relação de suficiência poderia, então, “puxar” a teleonomia do processo a uma irredutibilidade? Penso que isso dependa da relação entre ambos e quais utilidades que o resultado pode conferir ao próprio processo, tornando-os indissociáveis e irredutivelmente complexos."

...continua...

Gilberto Miranda Jr. disse...

...continuação...

É óbvio, e você destaca bem em seu comentário, que esse tipo de pensamento não faz parte da heurística pedagógica de grande parte das faculdades que confere graduação em filosofia no Brasil. E eu bem sei como foi a reação quando quis inserir na semana filosófica uma comunicação sobre os 150 anos da Origem das Espécies rsrsrs. Mas é de resistência à ações que vamos, de forma complexa e irredutível, rearranjando os espaços na emergência do que atende nossas necessidades. A luta, por vezes inglória, é o que nos resta.

Grande abraço, mestre...

Arnaldo disse...

Concordo com você.
E, principalmente no trecho que diz:

"Eu penso até que eles teriam muito à contribuir com a ciência. Ciência nasce da dúvida e da crítica. Enquanto eles quiserem empurrar suas certezas sem oferecer condições de testabilidade, não estarão fazendo ciências, por mais que esperneiem. Nesse ponto específico não há como discordar de você quando você aborda em seu blog a questão da garantia social que a ciência confere. Eu só não entendo como eles conseguiriam essa garantia trabalhando de forma a desacreditar o conhecimento científico em prol de suas crenças. É algo meio paradoxal isso, não é? Coisas da religião RS..."

É realmente paradoxal.

Aguardarei a continuação de seus artigos.

Waldemiro Romanha (wromanha@gmail.com) disse...

Excelente texto. Esperarei os próximos artigos lendo os anteriores.
Abraço.

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