terça-feira, 2 de agosto de 2011

O Esclarecimento que não nos cabe…

Antes de mais nada gostaria de pedir desculpas pela demora em postar novos textos. Minha vida tem estado atribulada ao extremo e precisei priorizar outras coisas nesse momento. Porém, em momento algum, esqueci do compromisso existencial que assumi em refletir sobre a realidade, meu arredor e minha condição de sujeito jogado no mundo dentro das relações que estabeleço.

Desta vez, incidentalmente ao artigo “O Esclarecimento que nos Cabe…” resolvi escrever mais algumas linhas. Desta feita evocando um texto antigo meu; origem do comentário do qual o artigo mencionado foi motivado.

Immanuel Kant, filósofo iluminista alemão escreveu em 1.784:

"Esclarecimento é a saída do homem de sua menoridade, da qual ele próprio é culpado. A menoridade é a incapacidade de fazer uso de seu entendimento sem a direção de outro indivíduo. O homem é o próprio culpado desta menoridade se a causa dela não se encontra na falta de entendimento, mas na falta de decisão e coragem de servir-se de si mesmo sem a direção de outrem. Sapere aude! Tem coragem de fazer uso de teu próprio entendimento, tal é o lema do esclarecimento. "

kant Podemos entender que "ser menos" está em nos deixarmos determinar pelo entendimento alheio ao invés de construirmos nosso próprio entendimento. Só assim seremos "mais"; seremos esclarecidos. A palavra esclarecer nos remete à noção de estarmos sob a luz, de estarmos claros, límpidos, cristalinos. Esclarecido é aquele que enxerga cada vez mais porque removeu as coisas que proporcionam sombras, que embotam a visão. Nossos condicionamentos, as circunstâncias repletas de meia-verdades e coisas aparentes que escondem intenções escusas de outrem funcionam como sombras: esses entraves a uma visão que pode ser mais longínqua, alcançável de horizontes mais amplos.

Isso não significa que ser assim garanta por si só alcançarmos uma suposta verdade além dessas e de outras sombras, mas tão somente nos exorta a não nos seduzirmos pelo que nos desviaria da realização de nossos desejos. Só conseguiremos fazer o que queremos quando enxergamos o caminho sem ilusões que nos cegam e nos desviem do que nos realizaria. Pode até ser que não exista caminhos sem ilusões: o esclarecido perceberá que é mais útil e prático, se for assim, escolher então as ilusões que propiciem atingir o que queremos.

Porém Kant mesmo, na continuidade desse texto, diz o que nos impediria de irmos em busca do esclarecimento:

"A preguiça e a covardia são as causas pelas quais uma tão grande parte dos homens, depois que a natureza de há muito os libertou de uma direção estranha (naturaliter maiorennes), continuem no entanto de bom grado menores durante toda a vida. São também as causas que explicam por que é tão fácil que os outros se constituam em tutores deles. É tão cômodo ser menor. Se tenho um livro que faz as vezes de meu entendimento, um diretor espiritual que por mim tem consciência, um médico que por mim decide a respeito de minha dieta, etc., então não preciso esforçar-me eu mesmo. "

A preguiça e a covardia então são as causas de nosso obscurantismo. O contrário de esclarecido é obscuro; aquele que elege tutores para determinar o que eles são. Continuamos menores cada vez que jogamos nossa responsabilidade nas costas de outrem ou nas circunstâncias. Elegemos ideologias, religiões, pessoas, gurus, políticos, professores, cientistas, ou mesmo as próprias contingências e circunstâncias e seu imediatismo como tutores de nossa consciência.

Marx chamou isso de alienação. Alienamos nossa consciência, viramos cascas autômatas que se movem sozinhas por inércia. Vivemos sob a tutela daquilo pelo qual alienamos nossa capacidade de pensar, sentir, agir. Doamos nossa consciência a um corpo ideológico que pensa por nós e nos toma como cascas para atingir seus objetivos por nosso intermédio. Não nos responsabilizamos, apenas acatamos, pois não temos como pensar sozinhos mais, já que alienamos essa capacidade para nossos tutores...

ZZ297AC5CB Kant ainda continua dizendo que imensa parte da humanidade considera a passagem para a maioridade, isto é, a condição de "ser-mais" (conceito de Paulo Freire) como algo extremamente difícil e também perigoso.

Responsabilizar-se por si próprio significa não ter a quem culpar pelos seus fracassos. Abrir mão do conforto psicológico de saber-se irresponsável pelos acontecimentos nos proporciona a paz de aceitar as circunstâncias e nos submetermos a ela sem revolta ou conflitos. Esclarecido é aquele que é construtor de sua própria história, tendo ao menos consciência do que necessita abrir mão e oferecer como tutela a alguém.

Os tutores, por sua vez, tal qual abutres famintos se lançam a nós com apelos irresistíveis para que não nos preocupemos com nada e deixemos que eles cuidem de tudo. E vamos nós, todos juntos, como gados, arrebanhados no modus operandis que nos tornam cativos, oprimidos, alienados e medíocres. A estética da opressão denunciada por Paulo Freire nos coloca numa relação promíscua entre oprimidos e opressores.

Adorno e Horkheimer vem nos trazer já no século XX uma petição de princípio como condição do esclarecimento, isto é, como condição da conquista de nossa maioridade, de nosso "ser-mais" freiriano. Dizem eles que é a liberdade a condição primordial para o pensamento e condição existencial esclarecida. Essa liberdade está também na discussão sobre os próprios pressupostos do esclarecimento, criticando o gérmen que ele traz de sua própria ruína, como nos exorta Hegel. Essa, segundo os fundadores da Escola de Frankfurt é a raiz da teoria crítica: a dialética do esclarecimento.

Libertar-se, emancipar-se, é reunir as condições de possibilidade de construção de uma autonomia necessária para ser ter coragem e disposição para varrer de nosso espírito a covardia e a preguiça que Kant coloca como causa do obscurantismo. Só assim parece-me ser possível que venhamos a resgatar nossa consciência da tutela alheia, nos desalienarmos para construirmos um futuro que realmente nos realize como seres humanos.

Atuar com consciência nas circunstâncias e não nos aceitarmos como irresponsáveis por nosso próprio destino, é conquistar a autonomia que nos liberta e nos esclarece.

Estaríamos preparados para isso?

 

O Jogo entre Luz e Sombra

sombras1_g Estarmos preparados para isso requer que abandonemos, por sua vez, o ideal iluminista de progresso contínuo. O iluminismo como teoria do esclarecimento pretende chegar naquela luz que cega, mas a consciência humana não trabalha fora do contraste. O maniqueísmo é a moralização daquilo que nos faz o que somos, ou seja, é a escolha de um lado daquilo que nos constitui a partir de vários lados conflitantes, complementares, contraditórios e conciliadores. A escolha é “moralista” e não ética nem política.

O que relegamos historicamente às sombras é também aquilo que nos constitui próprios para o esclarecimento intencional, propositado e interessado, mas sem o que jamais saberíamos onde nem porquê andar, caminhar, ir em frente (em frente? – não… para qualquer lugar).

Curiosamente o que Kant observa só é possível nos colocando acima da dualidade e, talvez, nos situando na Penumbra: aquele interstício entre luz e sombra que nos amplia os horizontes e nos faz senhores do contraste que precisamos para enxergar o que nos é útil.

Esse jogo, como a dança das sombras, nos leva a considerar todo ponto de vista em negociações coletivas para um bem comum que nos satisfaça no singular. Quando é que nós nos aperceberemos da importância da diferença e da diversidade para traçar caminhos que beneficiem a todos de acordo com as contingências?

 

Referências Bibliográficas

ADORNO, Theodor W., e Max HORKHEIMER. Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro, RJ: Zahar Editora, 1985.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 47ª Edição. São Paulo, SP: Paz e Terra, 2005.
KANT, Immanuel. Resposta à Pergunta: O que é esclarecimento? "Aufklärung" - in Textos Seletos. Petrópolis, RJ: Vozes, 1985. 

Para ler o texto completo de Kant, clique aqui > Kant - o que eh esclarecimento.pdf

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