terça-feira, 31 de março de 2009

Histórias antes de dormir....

Hoje eu resolvi não contar uma história ao meu filho. Ele estava esperando, querendo ouvir a fantasia fruto de alguém, tal qual Homero, que lhe desse parâmetros e direcionamentos de caráter; simples noção enquadrada na civilidade para que ele possa ser humano contextualizado.

O fundo real histórico que Homero imprimia em suas narrativas tão bem delineadas e dentro de cada um dos gregos que o lia ou ouvia, apenas servia como base sólida para o verdadeiro sentido do mito: a instrução, a modelagem de caráter, o ensinamento e o exemplo a ser considerado para serem, os gregos todos, parte de um mesmo grupo, na mesma identidade. O mito nos comunga, é preciso conta-lo e revive-lo.

Mas hoje não. Hoje é o último dia de março e prenuncia o mês em que Saturno estará mais perto da Terra. O ano de 2009 é o ano internacional da astronomia e o mês de abril se inicia como o mês mais promissor à observação do céu. Portanto minha história para ele foi outra.
 
Contei que antes dele nascer eu havia comprado uma luneta semi-profissional; aquelas com tripé e tudo mais. E que assim que eu reaprendesse a usa-la, nós iríamos ver as estrelas e o céu bem de pertinho, sem precisar estar lá.

Ele me disse:
- Nós vamos ver de pertinho, papai? Mas eu não consigo ir até a estrela, eu não alcanço.
E eu disse:
- Sim, nem você nem o papai. Nosso corpo não consegue. Mas a luneta pode levar nossa visão até lá.
E ele:
- Só a luneta? Eu queria ir todo.
Nossa, ele tem 3 anos, e eu disse:
- Só podemos ir inteiros quando imaginamos ou com uma nave espacial.

Curioso foi notar que ele tinha referências sobre naves espaciais. Os desenhos pululam o dia todo com naves, viagens interplanetárias. Isso ele já conhecia, não despertou curiosidade. Mas ele me perguntou sobre essa tal de imaginação. Dei-me conta que estava criando um ser totalmente racional e concreto, que tinha consciência dada pela experiência e pelos “nãos” que recebia de todos, e consciência, sobretudo, do quanto era limitado fisicamente e estava encerrado em algo do qual não podia sair.

Refleti sobre isso. Um receio incrível de implantar nele um dualismo que o tirasse da perspectiva monista de um ser total e ilimitado, e implantasse uma dicotomia que separasse nele sua mente e sua corporeidade, afastando-o de se ver inteiro, embora cheio de possibilidades.

Sob o pano de fundo da realidade que pude conceber, construí assim o mito dessa noite; a história que ele me pedia para contar antes de dormir. Disse que nós, mesmo sendo corpo, estando aqui conseguindo pular mas não indo longe. Desse corpo se constituía algo que nos levava onde quiséssemos. Pus o dedo na testinha dele e disse que ali dentro, lembrando e imaginando, ele poderia estar onde quisesse sem sair do lugar. No entanto, o gostoso mesmo era ir onde quisesse para tentar ir inteiro sempre que fosse possível.

Embora não precisássemos de naves nem de luneta para nos sentirmos na Lua, o pensar na Lua e nos imaginarmos lá nada mais era do que uma tentativa nossa de ver os meios dos quais pudéssemos nos valer para ir de fato. Na impossibilidade talvez de ir, ficava a experiência e a sensação de ter sentido, e que isso valia por si só.

Claro que não disse com essas palavras, no entanto não sei bem até onde ele entendeu. Sei que seus olhos brilhavam enquanto eu falava, e hoje, eu e ele estivemos entre as estrelas, pulamos na Lua, flutuamos no espaço sem ter saído daquele quarto aconchegante e na penumbra gostosa que nos unia. Fizemos juntos nosso mito e com base numa realidade percebida, construímos um modelo possível de nos relacionarmos com ela.

Boa noite...

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