quinta-feira, 10 de março de 2011

O Esclarecimento que nos Cabe…

Lembro aqui uma frase de meu amigo Anderson, com o qual tive a honra de estudar filosofia por dois anos memoráveis:

“Somos seres de interstícios, caminhando entre luzes e trevas…”

Umut_Kebabci1Na ocasião, extasiado pela profundidade do que ele disse, repliquei: “É aí que está a nossa dança, pois movimento constante; entre trevas e luzes, na penumbra, entre esclarecimento e cativeiro.

Se sabemos que uma luz total nos faria cegos, é no contraste, no interstício de luz e sombra que reside a permissão de delinear coisas e identificá-las naquilo que elas nos afetam. Talvez seja exatamente o que nos resta: delinear coisas naquilo que essas coisas nos afetam. Essa metáfora entre visão, luz e sombras parece ter sentido em Kant quando ele estabelece a estrutura racional a priori em nós, a qual não nos daria uma visão da totalidade do Ser. É no Não-Ser que conseguimos intuir o Ser, e como diria Sartre, na transcendência do fenômeno que a consciência intui as aparições infinitas que esse Ser possa ter.

O problema de Kant parece ser a concepção que, mesmo estando presos a uma estrutura racional limitada, tenhamos a capacidade de explorá-la totalmente até seus limites, através do que ele chama de Razão Pura. Para ele é esse o sentido, é esse o esclarecimento possível. Caminhamos em direção a uma luz explorando via razão as potencialidades dela própria naquilo que nossa racionalidade permitiria.

Só deixei de concordar com Kant quando comecei a ler sobre Fenomenologia. Husserl nos fala de uma consciência engajada, voltada a algo; intencional. É essa intencionalidade que nunca fará com que cheguemos a um total esclarecimento, pois a estrutura a priori que nossa razão possui é ferramenta e não fim em si mesma. Ela é meio, não modo. Fosse fim, a razão comandaria nossa consciência até seus limites apriorísticos e Kant estaria certo. Mas uma consciência engajada e voltada a um objeto é que “usa” nossa razão dentro de suas limitações.

Mesmo que acreditemos que a razão seja a famosa centelha divina (ligada ou sendo a própria alma), é difícil concebermos que ela atue independente daquilo que determine sua própria existência fenomênica, ou seja; uma consciência que é corpo, carnalidade, sensibilidade, percepção, emoção. Não sendo independente, a consciência é causa necessária; não só delimitadora da ação racional como causa da mesma.

Por outro lado, admitindo que a razão tenha um impulso próprio de explorar suas potencialidades e que isso seja chamado Esclarecimento, seria então a consciência intencional que traria as sombras que tornam inteligível o que se vê com a luz trazida. É a intenção que recorta a realidade e conclama a razão para explorar-se naquele recorte. A razão nunca irá atuar na totalidade e isso Kant já sabia, só não se deu conta de que não é apenas por suas limitações próprias, e sim por que ela é ferramenta de uma Consciência que se volta às coisas e vê apenas aquilo a que se está direcionada.

fio_luz Nesse prisma é que a escuridão se torna útero: caos de onde emerge a ordem (Kaos – Cosmo) acontecendo no tempo (Cronos). Vamos, engajados, colocando ordem, formando o Cosmos de acordo com o que nossa consciência se volta, e não numa direção fixa dada por uma razão iluminadora que tem sentido próprio na exploração de toda sua potencialidade, ou seja, afim com alguma teleologia natural.

Pois que somos seres dos interstícios, como disse Anderson: dançantes. Essa sensual e inebriante dança é a própria dialética na busca de esclarecimento e que não tem uma coreografia fixa com sentido próprio em si mesma, mas sim se espraia nas contingências na medida em que gera necessidades na consciência humana ou na medida em que a consciência constrói necessidades a partir dessas contingências. A dança é o sentido; construído na relação do corpo e mundo.

 

Indo Além…

Se levarmos em conta as pesquisas neurocientíficas atuais e, principalmente, uma teoria que tem chamado minha atenção (o Darwinismo Neural de Edelman), a plasticidade do cérebro funciona como um meio pelo qual arranjos neuronais integrados esboçam a realidade para respostas contingentes, auxiliados pela memória engajada que nos dá uma sensação de totalidade e continuidade.

Esclarecimento Ou seja, não temos uma unidade chamada EU que integra nosso passado, presente e futuro em uma continuidade fluídica, histórica e progressiva. Somos frutos de uma ilusão de continuidade que cria constantemente passado e presente para nos projetar a um futuro de acordo com as contingências. Somos, se é que somos algo, o interstício desses momentos em que as circunstâncias se justapõem. É nesse interstício que ensaiamos o próximo passo, “recrutando” os arranjos neuronais que esboçam uma leitura do que está na nossa frente e cria sentido reagrupando fragmentos do passado, recriando causalidades para o presente e nos preparando para o futuro. Tudo isso acontece fora do que comumente costumamos chamar de estado consciente. O que chamamos de consciência é a reunião de flashes e fragmentos os quais damos sentido no trabalho de recrutamento de arranjos neuronais frente a uma circunstância nova. Fora disso, é o piloto automático de antigos esboços para situações catalogadas.

Se isso tudo for verdade, somos muito mais autômatos que autônomos. Alguém duvida? Quantas “mentes” presenciamos em nós durante um único dia? Quantos padrões de comportamento, por mais condicionados socialmente estamos, vemos revezar em nós durante um único dia?

Somos múltiplos. E essa multiplicidade faz parte de nossa totalidade. Não somos um só, somos fragmentos: essa é a nossa totalidade. Ser total não significa ser inteiro e da mesma forma sempre. Ser inteiro e sempre o mesmo é ser fragmento da totalidade que se é.

Se esse mosaico que somos nós (esboços comportamentais frente as circunstâncias) pretende um esclarecimento contínuo e progressivo, ele precisa se fixar em uma alma ou mente substancial que lhe garanta necessariamente sua própria pretensão. Penso que foi isso que o homem fez ao longo da história: criou-se em algo que fosse necessário para o que ele queria, sem contudo conseguir sê-lo em momento algum.

O esclarecimento que nos cabe é o esboço momentâneo e contingente do que precisamos ver em um determinado contexto, mesmo que condicionados por princípios tradicionais impostos pela convivência em sociedade. O progresso é o acúmulo de fazeres e saberes em um dos escaninhos impostos por interesses que se pretendem metafísicos, mas não são.

Falarei mais sobre isso em um posterior artigo chamado O Corpo e o Mito do EU. Até lá…

3 comentários:

rapsodo disse...

Grande abraço meu amigo Gilberto, esta garra e disposição a tornar em fluidez um pensamento talvez possa se caraterizar no próprio fundamento da filosofia em um de seus possíveis aspectos em ser o que o que se propõe, ou seja, esta ligação entre amor e sophia.
Quanto a luz, alguns físicos, segundo o estudo da Óptica, insistem em dizer que a mesma, veja voce, origina-se em uma fonte e de lá vem cobrir com seu manto ajustando-se aos objetos e se oferecendo em multiplas diversidades em que o objeto absorve e reflete aquela (cor) que mais lhe condiz, ora, se assim for, estamos entre os objetos, a luz e a própria ausência da luz, a escuridão, onde há os objetos, estão lá,mas estão mal redimidos, como diria Carlos Drumond, por ela, a escuridão, podemos senti-lo, toca-lo mas não podemos vê-lo. Portanto estamos entre as coisas, a luz e a possibilidade de sua ausência. Esta estrutura racional a priori que Kant nos conclama é, deveras, obscura a um racíonio que não esteja advertido de seus pressupostos quanto ao tempo e o espaço, pois, são a própria condição de natalidade de seu objeto enquanto ente ou enquanto possibilidade de ser ou estar, porém, bem lembrado quanto a Husserl, , a velha intencionalidade que é o interstício entre tempo e espaço na condição apriori de Kant. Mas o que é esta intenção, de onde vem e como se estrutura em ser o que se propõe como tal?? Um impulso talvez que é atraído ou atrai pela circunstãncia em que se dá? Talvez a contingência em si seja a chave do entendimento a uma melhor aproximação disto que voce propõe como reflexão, que por sinal está afiadíssima meu caro... Sinto sua falta, precisamos conversar mais sobre estes delineamentos nem sempre confiáveis que nos são apresentados com insígnias de uma epistemologia em seu sentido mais rasteiro que nos passam como indubitáveis.

Gilberto Miranda Jr. disse...

Anderson, meu amigo rapsodo, que bom que veio dialogar comigo. Sinto imensa falta, meu irmão em Sophia. Sua e de toda a “nossa” turma, ou turba RS...

Pois é, amigo, sobre Kant, sabemos que fomos muito bem advertidos sobre essa condição de possibilidade. Mas ainda sim resta-me a desconfiança sobre o tempo como intuição apriorística. Sabemos nós que vivemos tempos variados de acordo com o contexto e é só levando em conta essa variação da percepção do tempo que podemos falar nele como condição a priori para a apreensão dos objetos. Por outro lado, a própria apreensão está dentro de outra condição, que é a Intencionalidade. Foi muito pertinente você colocá-la entre o tempo e o espaço, embora entenda que ela mesma os subverte de acordo como faz com que nossa própria consciência se volte aos objetos.

O que Husserl e mais tarde Merleau-Ponty desenvolveu a partir da fenomenologia e que nomearam como Intencionalidade é a noção de que nossa relação com o mundo nunca é estática a um objeto transcendente. É uma relação, ao contrário, constituinte a partir de uma consciência transcendental que nunca o encerra e sempre o reconstitui a cada percepção do mesmo.

Embora seja apenas a partir da coisa percebida que construímos sentido e significação para os fenômenos, nossa atitude natural nunca diferencia a percepção do percebido e nos faz crer que acessamos o “em si” das coisas e que são elas, transcendentemente, que nos preenche de seu significado intrínseco. A intencionalidade é isso; essa indistinção entre percebido e percepção, mas que porém nasce de um terreno comum, pré-reflexivo, que também é indistinção de sujeito e objeto. Eis seu monismo e gênese da intencionalidade.

Fora do ato intencional (o desejo de conhecer), não há distinção alguma e tudo está sobre sombras. Somente a redução fenomenológica consegue essa distinção quando observa a intencionalidade em ato, pois que reconhece sua origem monista antes da percepção da coisa como objeto.

E parece-me que mataste a charada, meu caro! É na contingência em que se dá os atos intencionais renovados constantemente e intermitentemente.

Saudades, irmão... Precisamos arrumar um jeito de fazermos um grupo de estudo e leitura.

Anônimo disse...

Eu ameiiiiiiiiiiiiiiiii seu blog..e ah o Deus da dança é Shiva Nataraja viu? rsrsrs abraço

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