sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

Filosofia Palatável

boca1 Há algum tempo atrás escrevi um poema (quando participava da Companhia Literária Mote Perpétuo em 99 – com meus amigos diletos Alaércio, César e Cláudio), que falava justamente sobre o poder da língua, da boca. Parece-me hoje que valha a reprodução. A questão da linguagem e do que representa esse poder de nomear, designar e nos comunicarmos é há tempos discutido filosoficamente e merece um destaque a partir dos últimos acontecimento.

A Boca

A boca escreve das coisas
Só o que as coisas têm de inefáveis,
A boca come, ingere, mastiga...
Ela mente, xinga, ri e trai...
A boca regurgita, aspira ao pulmão
Coisas que nos mantém vivos.

A boca desenha a vida em nossas almas,
A boca abocanha, escancarada,
A vida brotando nela, engole
A mixórdia do mundo kaos...
A boca é caos com K, Grecolatinamente boca,
Cantada, decantada, encantada
Boca sem dente, luva desbocada,
Amada boca, de palato e saliva
De solitude e palavras,
De sotaque e Somálias
Famintas e certeiras...

Boca que procura bico,
Tórax; da cópia, coronária,
Canária, canto úmido das bocas sedentas...
Sandálias, da boca pescadora, do peixe
Que morre pela boca, mas não escreve
Que mata, mordendo o manto da morte

Boca morta, entreaberta
Em arcadas jogadas, exumadas,
Ex humanos de bocas caladas,
Na calada dos guetos, boca do lixo...
Boca amada, vermelha insaciável,
Sugando a vida espremida,
Canalizada na uretra da boca,

Boca, boca...

Sem ânimo, anima almejada
Boca, cloaca, retal...
Boca invertida, molhada, vagina,
Devoradora boca de loba, malvada –
Malversada, maledicente, melodiosa...

Boca delgada, carnuda,
Desnuda, imunda, pura
Boca santa, boca mantra
Em sons e dons de cura, crua

A boca desdenha, compra e vende
A boca desvela, nivela, revela
As palavras arcaicas, imemoriais
Boca, boca, boca, Haikai...


Entendo, hoje, que esse poema diga apenas que nossa Boca profere o necessário, nem mais nem menos, para ser inteligível aquilo que pretendemos expressar. Claro que uma malversação da língua impediria isso, mas nunca vi ninguém reclamar por não entender o que foi dito quando comunga do mesmo Agir Comunicativo1 (Habermas, 1987) de seu interlocutor. Segundo Habermas, uma ação comunicativa entre interlocutores acontece segundo suas relações. Isso significa que, dada uma cultura, o uso do vernáculo se dá de forma fluídica e natural, mesmo que para outro grupo a conversa esteja ininteligível. É claro que Habermas fala de cosmovisões e do aspecto intersubjetivo do discurso, mas é óbvio que esse aspecto também influencia e determina tanto o campo semântico utilizado quanto a própria escolha dos termos e palavras.

A questão toda, que quero levantar, finalmente, nesse artigo, é a aprovação da Lei do deputado Aldo Rebelo2 (Partido Comunista do Brasil) a ser apreciada em nosso congresso. Essa Lei3 (1676/99) pretende proibir a utilização de palavras estrangeiras em nossa língua, mais especificamente em anúncios publicitários, documentos oficiais, letreiros de restaurantes e lojas e meios de comunicação em geral. Não vou aqui fazer uma análise pessoal sobre o Deputado, tão pouco entrar em méritos quanto sua ideologia ou atitudes recentes, mas é curioso saber que ele também pretende colocar sob vigilância ONGs estrangeiras4 por pensar que muitas delas atuam de forma suspeita com intuito de atrasar o desenvolvimento nacional. Esse tipo de coisa, “achismos”, teorias de conspiração, e, sobretudo, essa pitada xenófoba, deixam-me pasmo!

Eu só queria saber por que cargas d´água precisaríamos de estrangeiros com intuito de atrasar nosso desenvolvimento se a nossa classe política exerce essa atividade há séculos no país com o “handcap” e “background” que os levaram a uma excelência insofismável ? (Ops, utilizei palavras estrangeiras, posso ser multado agora!) Isso me leva a concluir que essa nova “cruzada” contra estrangeirismos possa ser apenas um desejo mercadológico de monopólio de somente os políticos brasileiros legítimos terem o direito de atrasar nosso desenvolvimento. Chistes à parte, claro, outros pontos devem ser levados em consideração.

A Língua

O que é a língua de um povo ? Sinceramente, prefiro desenvolver um artigo específico sobre isso, falando das incursões platônicas, aristotélicas e sofísticas para a arte da argumentação e da retórica (erística), passando pelos naturalistas do século XIX, Saussure, chegando a Peirce e sua semiótica e desembocando em Chomsky e Wittgenstein. Por aqui, nesse Blog, fico apenas com algumas questões que julgo serem pertinentes em relação a essa Lei. Não em relação à Lei em si, mas sobre os argumentos envolvidos em sua petição, por parte do Deputado Rebelo.
O que ele acha que seja uma Língua Nacional? De bate pronto, no entanto sem me curvar ao senso comum, julgo ser a língua, antes de tudo, a expressão cultural de um grupamento específico de pessoas. E a cultura, como sabemos, é a tradução prática de uma cosmovisão comungada por esse grupamento. Difícil é definir esse grupamento por limitações geográficas, sabendo que num país com as dimensões do Brasil, as suas zonas fronteiriças comungam, muitas vezes, aspectos culturais mais estrangeiros do que nacionais.

É fato que toda língua convive com certas modificações, coroando com o tempo todos os léxicos com termos coloquiais e gírias incorporados ao vocabulário comum. Mas até esse nível temos algumas separações:

1. Primeiro a Norma Culta, definida como padrão pelos gramáticos, leva em conta toda a formação lógica e fonética da língua, no entanto eles sabem que ao longo do tempo tudo pode se “perverter”, e que isso é natural;

2. Normas Sociais, onde gírias e jargões acabam identificando um grupo específico, conferindo um status e uma identidade própria. Se esse grupo, por alguma razão cair nas graças da mídia, seus jargões e gírias serão incorporados ao vocabulário nacional e gramático algum segurará uma cultura estabelecida, seja ela contrária à norma culta ou não.

Curiosamente, o item 2 pode acontecer também por conta de grupos sociais que não gozam de prestígio econômico ou social no início, e são construídos pela indústria cultural como padrão de conduta. O exemplo clássico são os jargões do morro “funkeiro” carioca falado em larga escala em qualquer grupo de jovens universitários.

É claro que entre o falar e o escrever lá se vai uma distância estratosférica, ainda mais em ambientes acadêmicos, onde a exigência da norma culta é paradigma inquestionável. A Lei em questão não liga para isso, ainda bem. Mas a questão é outra, como coibir a expressão natural de um povo, sua expressividade cultural e as formas onde ele encontra a interatividade e o agir comunicativo?

O prezado Deputado Rebelo esquece que desde 22 mapearam a cabeça brasileira, vaticinando-nos como antropofágicos por natureza. Claro está que mesmo não sendo nossa natureza, esse sentido foi construído na dialética de nossa história pregressa. Não copiamos; regurgitamos nossa brasilidade reciclando tudo que vem de fora. Do modernismo ao tropicalismo, passando pelo Mangue Beat, estaremos sempre antenados no mundo a despeito de nossos pés na lama. É essa a característica do brasileiro. Como poderia uma Lei querer determinar como nossa natureza (construída a duras penas) deva ser ?

Sinceramente, julgo ser um tiro n´água essa Lei.

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Notas e Referências:

1 – HABERMAS, Jürgen. Teoria de La acción comunicativa I e II – Madrid: Taurus 1.987.

2 – Aldo Rebelo, Deputado do PC do B, in http://pt.wikipedia.org/wiki/Aldo_Rebelo / Seu trabalho na câmera > http://www.camara.gov.br/Sileg/Prop_Detalhe.asp?id=28530 / Sua página pessoal > http://www.aldorebelo.com.br/

3 – Leia mais sobre essa lei nas matérias da Veja On Line, isto É On Line e da Folha On Line, respectivamente in > http://veja.abril.com.br/300800/p_086.html
http://www.terra.com.br/istoe/1621/1621vermelhas.htm
http://www1.folha.uol.com.br/folha/educacao/ult305u3541.shtml
Curioso é pensar em ler as notícias desses sites (ou sítios) com novos nomes a partir de agora : Veja na Linha, Isto É na Linha e Folha na Linha.

4 – Notícia vinculada no Diário On Line – in http://www.diarioon.com.br/arquivo/4607/geral/geral-52990.htm

3 comentários:

Luciana Nunes disse...

Gostei muito!
Bastante interessante!!!

Natacha disse...

OI
Tudo bom?
Gostei do seu blog, eu e um amigo meu estamos criando um blog bastante filosófico também..kkk
Se tiver um tempinho passa por lá e dá uma olhada.

Tchau

Anonymous disse...

muito interessante!!

sinceramente adoraria ver o tal artigo com a erística, passando pelos naturalistas do século XIX, Saussure, chegando a Peirce e sua semiótica e desembocando em Chomsky e Wittgenstein.

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