quinta-feira, 1 de maio de 2008

Filosofando na Estrada

Do que serve a filosofia se não for para transporta-la em nosso dia a dia e lançar um olhar diferente sobre o mundo? O conhecimento, a verdade, a realidade, a sociedade e nossas relações; desde a Grécia antiga vem sendo investigados, ponderados, analisados e reconstruídos pelo pensamento filosófico; e aspirantes a filósofos precisam exercitar esse novo olhar, sobretudo, usando sua própria vida em princípio, e abarcando esse olhar a tudo que chega às suas percepções.

Esse ano, dei-me por mim como um ser que viveu à beira da estrada por quase toda minha vida. Desde minha mudança da Vila Guilherme em São Paulo, para uma passagem rápida até os 8 anos na Penha, mudei para Guarulhos e vivi até os 30 anos, quando mudei para o Vale do Paraíba a trabalho. De lá para cá, lá se vão 32 anos vivendo com a Rodovia Presidente Dutra ao meu redor.

Não sei até que ponto a proximidade de uma estrada pode influenciar nosso pensamento, mas agora, estudando academicamente Filosofia, me deparo com uma característica cética e relativista em meu pensamento que me faz buscar essas referências em mim. Sou um filho da Dutra.

É possível vincular nossa forma de pensar às origens que nos forjaram ser o que somos? Meu professor, mestre em Filosofia da PUC, Atanásio (o Grego), diz em suas aulas que um filósofo é o que é graças, sobretudo, de onde ele veio, suas origens, suas raízes. É impossível fugir delas. No entanto, penso aqui comigo, que essas origens extrapolam o contexto sócio-cultural em que nos inserimos, e abarca também um contexto geográfico. Se não for assim, mesmo não tendo sido criado numa família rígida e autoritária, minha formação em colégio de padres (Claretiano de Guarulhos) em plena ditadura e tendo servido o exército, me fariam uma pessoa bem menos eclética do que sou.

Claro que o contato com as idéias socialistas, a religiosidade mais ampla e informal e a liberdade que meus pais sempre me deram para que eu fizesse as escolhas que quisesse para minha vida, quebraram uma escrita forjada pelo meio em que eu vivia. Mas não consigo deixar de considerar a Dutra como fator importante na forma como vejo o mundo hoje. Sem base, é claro, talvez até de forma Ad Hoc, mas isso se constitui um exercício de investigação. Talvez ainda volte a ele futuramente.

Construímos sentido para as coisas. A partir desses sentidos, as coisas adquirem essências, e têm motivos, finalidades, e razões de existirem. Pelo menos para nós. Mas as coisas existem sem sentido até que eles sejam construídos por uma historicidade humana? Cada vez me convenço mais disso, a despeito dos essencialistas maravilhosos que temos na história do pensamento mundial. No entanto, isso não me torna existencialista, pois talvez a construção de sentido possa ter sua gênese em algo já dado pela própria coisa, intuído em nós, no contato com ela.

A estrada é feita com um sentido próprio. Ela serve para nos conduzir, nos dar um caminho a trilhar, com um objetivo de chegada a ser atingido. Esse novo sentido que tenho dado a ela, no que tange a forjar em nós um pensamento mais fluídico, heraclitiano, não tem a ver com o sentido da qual ela foi construída, mas sim no próprio sentido que tomo no olhar que tenho sobre as coisas. O ir e vir, dialeticamente postos em nossas fuças, por boa parte de nossas vidas, nos daria subsídios para percebermos a perenidade da mudança como tônica da realidade? Não é possível conceber uma fixidez monista, à La Parmênides, tendo a Dutra como pano de fundo de parte de sua infância, toda adolescência e vida adulta.

A mudança, o fluir contínuo das coisas, seu ajuste e aparente equilíbrio harmônico dado por uma constante luta de forças antagônicas, parecem fazer parte da nossa realidade, e fica patente e explícito numa vida permeada por uma auto-estrada como pano de fundo de suas relações com o mundo. Mesmo assim, forjados por milênios de ancestralidade, Parmênides e a escola eleata nos remete à necessidade de vermos e insistirmos na fixidez, na integridade das coisas, em seus sentidos dados e prontos num mundo que só serve para que nos encaixemos nele.

Só fui perceber que isso não era necessariamente assim quando comprei minha motocicleta. A dimensão que uma viagem de moto nos dá é totalmente diferente de uma viagem de carro. De carro, estamos protegidos de tal forma que nos isolamos do mundo, e nos sentimos apenas usando uma falsa mobilidade para estarmos exatamente onde estamos, desde sempre. Com uma moto sob você não funciona assim.

Minha moto, a Sophia, conseguiu tornar esses pensamentos, incipientes e até banais de outrora, numa dimensão concreta e palpável dessa tese maluca que defendo aqui. No silêncio do motor em meus ouvidos, vendo e sentindo a estrada ser comida pelos pneus da Sophia, pareceu-me claro o quanto nos escondemos do mundo e das pessoas, (e de nós mesmos) constantemente.

No carro, nos sentimos seguros. Não só em relação a acidentes. Mas em relação às próprias coisas do mundo. O carro é uma extensão do isolamento que nos impomos num mundo cada vez mais individualista e egoísta, onde nos isolamos em nossos prazeres e deixamos tudo lá fora, fora de nós... Nunca olhamos para o motorista do lado, nos embrenhamos em nosso mundinho veicular, esquecendo tudo e todos dentro da concha que nos protege (talvez de nós mesmos).

Na moto, estamos muito mais em contato com as coisas, com o mundo, com as pessoas, com as sensações... A cada buzinadinha de outro companheiro motociclista, a cada ultrapassagem, a cada mudança de pista, somos obrigados a interagir com os outros. Somos obrigados a olha-los, a considera-los, a estarmos inseridos na mesma realidade deles... É claro que tem uma questão de segurança como pano de fundo disso. Mas esse alerta constante; essa consideração com tudo o que está em volta, nos faz mais vivos, mais ativos, mais intersubjetivos com o próximo e com o mundo.

De carro, paramos nos estacionamentos dos postos, entramos no local, mal olhamos os atendentes e pessoas, comemos e saímos; ensimesmados em nós mesmos. De moto, paramos e pessoas conversam conosco, perguntam coisas, oferecem ajuda, solicitam atenção, interagem... Entramos nos locais embrenhados na vida; na nossa vida e na vida das pessoas... Olhamos nos olhos dos outros, cumprimentamos, acenamos as mãos, cabeças. É fantástico isso...

Chegamos leves. Catárticos. Repletos de realidade transbordando de cada poro. Uma experiência maravilhosa de nos sentirmos não mais isolados, mas num mundo onde existem pessoas que talvez (ensimesmadas nelas mesmas) esperam apenas um aceno, um sorriso, um bom dia que seja...

De moto, parece que o mundo tem jeito e que fazemos parte de algo maior que tem um sentido real, e que vale a pena. De carro, somos apenas um.

3 comentários:

Aline Brasil disse...

Filho da Dutra...

Já perecebeu que toda estrada nos deixa marcas? Quando viajo é assim... sou marcada, de tal forma que nunca posso retornar a mesma!

Não ando de motocicleta, mas às vezes arrico-me a pegar uma estrada... e, ainda assim, sinto-me marcada!

Essas marcas e impressões me fazem sentir filha do Mundo... Nas estradas perco minha identidade, minha origem e torno-me universal...

Lindo texto! Profundas reflexões! Viva a Sophia! rs...

Gilberto Miranda Jr. disse...

Entendo perfeitamente o que é isso Aline. Essas marcas... Elas estão em toda parte, mas não são máculas, são marcas... Indeléveis na medida dos sentidos que construímos para elas.

Nos sentirmos universais talvez seja o verdadeiro resgate de nossa identidade. Gosto de me sentir assim. As coisas e pessoas diexam marcas em nós, mesmo que não deixemos marcas nelas (embora tenhamos a mania de exigir reciprocidade em tudo o que damos)...

As viajem mais marcantes são aquelas que fazemos montados em nossos corações... Nessas viagens nem importa tanto o destino e a chegada, mas sim o caminho que percorremos...

Muito obrigado por seu cometário. E viva a Sophia !!!

Ricardo Guimarães disse...

Cara, já se vão mais de 60 mil km desde que comprei minha lambreta vermelha em fevereiro de 2007. E essa relação com a estrada é como você descreveu. No começo era um meio de transporte barato e ágil. Agora é necessidade de fazer parte de algo maior e que vale a pena. Mostrei o seu blog à minha ex-namorada e ela entendeu como eu me sinto pilotando. Disse que somos muito parecidos, filosoficamente falando. Pois é nos finais de semana, quando vou para a estrada, com a liberdade soprando na viseira do capacete, que vejo sentido nas coisas e percebo essa malha de vida que não resiste a um simples olhar. De moto eu tenho insights nas montanhas de Deus como seu filho batizado no asfalto...

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