segunda-feira, 9 de junho de 2008

Reflexões Metafísicas I

Quando se diz que a Metafísica é a ciência do Ente enquanto Ente, ou do Ser enquanto Ser, este “enquanto” que formata a idéia exprime o ponto de vista do qual se considera o Ente, o Ser, formalmente. Nesse aspecto, a Metafísica estuda e entende o Ser na medida em que ele é tomado em si mesmo, independente de como ele se manifesta em sua diferença, variedade, diversidade, ou em qualquer categoria determinada e particular em que ele possa ser tomado e identificado. Existencialmente, poderíamos dizer que a metafísica preocupa-se com a essência e não com o acidente que pode nos mostrar um Ser numa variedade que o vele, o esconda atrás de aparências.

Até aqui, tudo bem. No entanto, ela se configura aos olhos incautos como “viajante” na medida em que parte de pressupostos indemonstráveis, e assuma uma dualidade natural transcendente que coloca o Ser de algo fora do escopo de sua expressividade existencial. Como nós, humanos, temporais e finitos em nossa existência corporal, podemos inferir, assumindo apenas uma tradição introjetada culturalmente, que, além de nós, exista de forma necessária e suficiente uma essência anímica apartada e dialeticamente expressa em nós enquanto seres-no-mundo?

Aqui vale uma distinção, embora própria do vocabulário filosófico, de pouco entendimento entre as pessoas em geral. O Transcendente é aquilo que, de fora, engendra-se numa coisa e lhe dá características outras não determinadas por sua própria constituição. O Imanente é aquilo próprio da coisa, que lhe é exteriorizado por ela mesma, fazendo parte constitutiva dela. Deixemos de lado outras acepções históricas possíveis e fiquemos nessa redução, perguntando: aquilo que identifica o Ser de uma coisa, sua essência, se refere a um caráter transcendente ou imanente dessa coisa? Eis a grande pergunta e o grande dilema metafísico.

Parece-me que, mesmo admitindo uma transcendência constitutiva nos entes em geral, nada nos garante que esse elemento transcendente caracterize necessariamente nossa verdadeira natureza (se é que possamos inferir ou partir da noção de que tenhamos uma verdadeira natureza que nos distinga como entes – esse, a meu ver, o objeto da metafísica).

A isso, me reporto à incômoda constatação de que nosso próprio organismo é composto de um microbioma que compõe 90% do material genético mapeado em nós pelo Projeto Genoma. Acreditem. Esse corpo, esse mesmo corpo em que brilhantemente Merleau-Ponty garante ser a sede formal de como nos inserimos no mundo enquanto entes, é constituído de, ao menos, 90% (90 trilhões de microorganismos vivendo em nossos intestinos) de coisas vivas que teoricamente não somos nós, e fatidicamente alteram nossos humores, afetos, cosmovisões, consciência e nossa forma de ser-no-mundo.

Se existe então algo que nos transcenda e que seja possível realmente mapear sem se render à tradição imposta por uma autoridade de forma Ad Hoc, talvez precisássemos nos ver agora como uma colônia de bactérias, e descartar qualquer noção monística que nos defina como seres humanos. Como saber se minha própria capacidade cognitiva não seja alterada pelos meus intestinos e seus habitantes, transcendendo minhas sinapses neuronais? Como saber se o que escrevo agora não é fruto de uma bactéria existencialista que está influenciando meus pensamentos? Piadas à parte, a cada descoberta científica, podem nos dar desdobramentos filosóficos espantosos.

Nossa essência é imanente, dada concomitante à nossa inserção no mundo, nossa existência, reconstruindo-se ao longo dessa mesma existência, ou tudo o que o somos e vivemos já vem transcendentemente colocado a nós, bastando que relembremos platonicamente como as coisas e o mundo são? Essa transcendência é espiritual ou vem de nossas próprias entranhas intestinais? É, parece chiste, eu sei.

O Ser é aquilo pelo qual o Ente é Ente, se constitui o fundamento do Ente, enquanto considerado em si mesmo. A Metafísica estuda esse Ente no seu Ser, naquilo que ele se distingue e se torna ele próprio e não pode ser confundido com mais nenhum outro. Nosso Ser, se separado daquilo que somos-no-mundo, abre espaço para um dualismo transcendental cuja demonstração requer noções além de nossa capacidade cognitiva. Como poderíamos falar parmenidianamente que o Ser é infinito, eterno, imutável, se nós e aquilo que dá forma à nossa expressividade enquanto existente (nosso corpo e seu microbioma) é finito, temporal e se move a todo instante?

A única forma de resolver esse dilema, talvez, e pelo simples fato de podermos pensar sobre isso e querer que seja verdade, é o fato de que sentimos realmente que exista algo além de nós que nos defina enquanto Ser. Mas esse algo pode ser nossa cultura, o inconsciente coletivo, a própria sociedade e seus fetiches; que voltados a nós nos moldam e nos refazem na relação que nós estabelecemos com o mundo.

Aqui, talvez, cheguemos a um dos pontos onde queria chegar desde o início. Metafísica então, enquanto ciência, filosofia, ou abordagem, teria o direito de inferir essa transcendência ligada a uma instância divina? De onde teria vindo isso? Aristóteles, que a inventa, precisou estabelecer doricamente, a partir de uma cosmovisão grega, a necessidade do rompimento da diferença entre o estatuto divino e o humano. Essa diferença de estatutos, preconizada pela religiosidade mítica formatada por Homero e Hesíodo, já teria sido rompida pelo Orfismo, por Pitágoras e posteriormente por Platão, colocada em dúvida sistemática pelos Sofistas e Céticos em outros âmbitos (que talvez não caiba aqui discorrer), mas retomada e sistematizada em Aristóteles.

O rompimento dessa diferença de estatutos, no entanto, precisou dualizar a natureza humana, pois fazia parte de toda uma tradição, que necessariamente coloca a natureza divina apartada da humanidade, do mundo das aparências. O único acesso possível do homem ao mundo divino, sob esse prisma, é implantar nele uma centelha, uma origem, uma transcendência que pudesse ser resgatada para catapulta-lo desse mundo físico, animal, humano. O Ser Humano precisa deixar de Ser Humano para assumir seu lado divino. Precisa sublimar sua natureza titânica para que Dionísio seja revivido a partir de seu coração.

Isso me parece um contra-senso; inclusive quando Nietzsche fala do Sobre-Humano sem conotações divinizantes. Como deixar de ser humano, ou superar nossa condição humana para ser algo que não é mais humano, ou mesmo além do humano? Para quê? Será que não é possível, mesmo sendo humanos, sermos melhores do que somos ou nos relacionarmos com o mundo de forma mais eficaz, eficiente, construindo significados que nos colocam mais nus perante as coisas sem essa transcendência necessária e desejável por essa ânsia que nos desloca do que somos?

Parece-me que isso se constitui apenas uma soberba, própria nossa, antrópica, que nos dá uma noção de que sabemos exatamente o que somos. Se soubermos, tudo o que escapa daquilo que tomamos como estabelecido, já se coloca fora de nós, transcendente, sobre-humano, além de nossas próprias possibilidades. Aqui talvez entre uma nova Metafísica: aquela que não precisa transcendentalizar nada no Ser Humano, mas que possa considerar tudo aquilo que percebamos fenomenicamente no homem, próprio dele, constitutivo dele. Isso, talvez, nada mais seja do que honestidade intelectual levada a um radicalismo extremo (sei que foi redundante, perdoam-me), e que Merleau-Ponty tenta levar a cabo em sua obra inacabada.

O corpo então, esse decantado mal; cárcere do inefável, devorador de Dionísio, se constitui como mediador e determinante daquilo que concebemos como Ser Humano, em sua relação existencial com o mundo. Ele molda, medeia e determina nosso psiquismo na percepção daquilo que podemos conhecer do mundo, como conhecemos, e até onde iremos com esse conhecimento. Esse corpo traz em nós toda estrutura arcaica do que nos define como espécie, em constante mudança e adaptação pelas contingências ambientais, e nos insere numa cultura que nos obriga a imitar e reproduzir tudo aquilo que vemos e pensamos sobre as coisas. E tudo isso, simbioticamente composto por muito mais organismos e material genético do que o constitui. Enquanto seres-no-mundo, nosso psiquismo é nosso corpo e suas possibilidades.

Esse é o nosso Ser. Romper a diferença entre os estatutos divinos e humanos é deixar de atribuir transcendência em nossa essência, e permitir explorar as possibilidades e potencialidades daquilo que nos faz nós mesmos, no mundo, existentes e sujeitos “interagentes” aos objetos e, sobretudo, ao outro (inclusive nos reconstruindo na alteridade).

Se conseguirmos suspender juízos sobre possíveis transcendentalidades em nós, e nos observarmos fenomenologicamente ao longo do drama existencial, talvez havendo alguma transcendentalidade, ela nos salte aos olhos durante nossa investigação. Ela não pode ser pressuposto a partir da autoridade nem dos nossos anseios de que ela faça parte do que nos constitui. Eis uma abordagem metafísica aderente ao que ela se propõe, enquanto ciência.

Por fim, algumas conjecturas mais... Talvez, a nossa Essência seja justamente a característica acidentável de nosso Ser. Talvez ainda, nossa Essência seja a própria existência. Enquanto Seres, só o somos no mundo.


Referências

BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia Grega. 13a. Edição. Vol. II. III vols. Petópolis, RJ: Editora Vozes, 2002.
Collinson, Diané. 50 Grandes Filósofos - Da Grécia Antiga ao Século XX. São Paulo, SP: Contexto, 2006.

LALANDE, André. Vocabulário Técnico e Crítico da Filosofia. 3ª Edição. Tradução: Fátima Sá Correia. São Paulo, SP: Martins Fontes, 1999.

MOLINARO, Aniceto. Metafísica - Curso Sistemático. 2ª Edição. Tradução: João Paixão Netto e Roque Frangiotti. São Paulo, SP: Paullus, 2004.

MOUTINHO, Luiz Damon Santos. “O SENSÍVEL E O INTELIGÍVEL: MERLEAU-PONTY E O PROBLEMA DA RACIONALIDADE.” KRITERION - Revista de Filosofia, Dez de 2008: 264-293.

PENA, Sergio Danilo. “Nós as bactérias....” Bio Camp Laboratórios. 10 de Agosto de 2007. http://www.biocamp.com.br/novidades/novidades.php?codigo=35 (acesso em 9 de Junho de 2008).

REALE, Giovanne, e Dario ANTISERI. História da Filosofia. 7a. Vol. I. III vols. São Paulo, SP: Paullus, 2002.

Von ZUBEN, Newton Aquiles. Temas Fundamentais de Fenomenologia. São Paulo, SP: Editora Moraes, 1.984.
 

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