domingo, 24 de janeiro de 2010

Fazendo ECO aqui…

Umberto Eco - Copyright 2010 by R. D. Flavin Acabei de ler um excerto de um texto de Umberto Eco postado no blog de Alice Valente, chamado Os Poetas e a Interrogação do SER em ECO, do livro Kant e o Ornitorrinco (Edições DIFEL 1999). Eco é um autor raro. Em geral, entre os incautos, ele não é chamado de “Filósofo”, o que faz com que ele se sinta (e nos faça sentir) ser autorizado para criticar a Filosofia naquilo que ela se enclausura no pensamento da tradição; felizmente liberta pela contemporaneidade. Ele é um “ensaísta”, digamos assim. Um escritor. Um artista das palavras e que tanto pode construir tramas (como O Nome da Rosa), como dedicar-se à reflexão sem os rigores de uma filosofia menor, caduca, fechada em seus limites e pretensamente abarcante da totalidade do real. Eco faz eco (desculpem o trocadilho) “ensaiando”; ou seja, fazendo obras abertas, tentativas, aproximações… Algum outro incauto pode ver nisso um sinônimo de “imprecisão”, mas não lhe faltam rigor, método e profundidade.

No trecho destacado por Alice suscita-me um questionamento. Não aprecio a crítica que parte de um conceito já pronto, a não ser que seja para questiona-lo e reformula-lo sob uma perspectiva que o atrele ao perceptível. Quando Eco fala do SER ele fala do SER parmenediano, um SER análogo ao OVO Primordial dos Órficos e ao Número de Pitágoras, e que foi responsável por toda filosofia platônica e pela cultura ocidental ao sincretizarem-se com o judaísmo-cristão. Até hoje há controvérsias em relação às raízes orientais da filosofia, mas não é possível negar que, ao menos em uma vertente da Filosofia, há clara comunhão cosmovisionária com a mítica oriental. Não nego, no entanto, que mesmo havendo essa raiz comum, os gregos, assim como salienta Nietzsche, não tiveram uma cultura autóctone:
“(…) eles sorveram toda a cultura viva de outros povos e, se foram tão longe, é precisamente porque sabiam retomar a lança onde um outro povo a abandonou, para arremessa-la mais longe” (NIETZSCHE, Filosofia Trágica na Época dos Gregos, §1, p. 263)1
Um Universo que transcende a partir de uma Unidade2 constitutiva que se degenera na diversidade é uma concepção recorrente oriental (e mundial) que foi apropriada e racionalizada pelo pensamento filosófico de linha órfica-pitagórica-platônica. Esse SER esférico, imóvel e compacto cumpre as exigências de uma coletividade que precisa postular uma realidade fundamental que explique as ambigüidades experimentadas no cotidiano e direcione, com um Télos, as ações e objetivos coletivos. Esse Universo cria um Dever que direciona as ações para resolve-lo naquilo que é e que não pode deixar de SER.
 
Por outro lado uma vertente relegada ao ostracismo histórico, como “pensadores menores”, concebe um Universo que é Multiverso em constante transformação, moldado pela confluência dos interesses humanos e sem um Télos absoluto determinante de coisa alguma. Toda e qualquer determinação, nessa vertente, é dada pela ação volitiva humana, histórica, na pura dialética entre desejo e possibilidade. Esse Universo cria um Devir como constituição fundamental do real: a mobilidade constitutiva de que nos fala, por exemplo, Julian Marias
 
Essa segunda vertente não anula a Unidade, mas a postula imanente e não transcendente. A primeira vertente, a oficial, a tradicional, cria um Dever em Não Devir. A segunda cria o Devir como Dever. Já discutimos isso e é bom poder fazer essa referência.
 
O texto de Eco transcrito por Alice, mais à frente, reformula o conceito de SER tirando-o da totalização imóvel parmenediana. Isso me agrada. Ele “relocaliza” o SER tornando-o despreconceituado, nas palavras dele. Faltou, a meu ver, fazer o mesmo com a Filosofia, ao menos de forma explícita. Ela [a Filosofia] está para o ambíguo assim como está o SER alinhavado por Eco, pois constituída pela própria linguagem, mesmo buscando o rigor da conceituação (ligada, principalmente, à segunda vertente que trago), aceita e trabalha na ambiguidade da linguagem.
 
Esse trabalho com a ambiguidade da linguagem e da própria realidade, não é como a Poesia faz, claro. O postulado dessa Filosofia Bruta, do Olhar Primordial afim com as coisas da qual nos fala Merleau-Ponty e Nietzsche, é uma analogia. Ela trabalha quase como resgatando a alegoria mítica para dar conta do que a linguagem não dá. O poeta, por outro lado, mas no mesmo sentido, imprime um aspecto estético à mensagem; causa um impacto que vai para além do apreensível e do distinto, enquanto que essa Filosofia procura a apreensão cognitiva, da possibilidade de apreensão do sentido, mesmo que ela possa, em muitos aspectos, proporcionar algum impacto estético – vide os escritos do próprio Ponty, Gadamer, Foucault: são literários e têm pouco do rigor sisudo academista.
 
os_4_elementos Ao revistarmos, por exemplo, o nascedouro da Filosofia junto aos chamados pré-socráticos (injustamente, diga-se de passagem), vemos o esforço dos mesmos em dar conta da necessária apreensão da origem genética da realidade e do que constitui o Devir.
 
Recusando-se a dualizar, e antes disso, a dicotomizar a realidade, procuravam o princípio único constituinte da mesma. A metáfora, a alegoria, a analogia fez e faz parte desse caminho tortuoso, incerto e ambíguo. A solução “lógica”, porém, nega a experiência, nega a sensação, nega a percepção. Foi preciso a dualização para uma apreensão objetiva: nasce, assim, o “metafísico”, eivado de transcendência que traz para si o controle, a previsão e a submissão do Devir.
 
Esses primeiros filósofos, antes da inversão da transcendência da realidade, assemelhavam-se aos antigos poetas, aedos, rapsodos: leitores da realidade em sua constituição e dinâmica, dentro de um devir imanente que constrói os sentidos de acordo com as necessidades históricas humanas.
 
Quem melhor, a meu ver, traduziu o Devir foi Heráclito: clássico aclamado dentro de toda sua obscuridade poética, profética e, sobretudo, filosófica. Ele e todos aqueles que preservaram o discurso na constituição do real souberam e lutaram contra a impostura “metafísica” que separa o mundo para torna-lo apreensível,  controlável, determinável… Eles respeitaram esse “embaraço” de que Eco fala; sabem que a Filosofia não o resolve, pois sabe que linguagem alguma chegará objetivamente à condição fundamental da realidade.
 
Por isso Eco, para respeitar esse embaraço de que fala, deveria, a meu ver, conceder tanto ao SER quanto à Filosofia um terreno mais vasto e despreconceituado, incluindo, por certo, a Semiótica (a quem recorre) como parte integrante da Filosofia. Curiosamente, ele parece fazer isso no livro que tenho em casa: Semiótica e Filosofia da Linguagem, da Editora Ática, Série Fundamentos, de 1991. Soa-me, portanto, estranho ele decretar que essas ambigüidades “a reflexão filosófica não resolve” como se a reflexão filosófica fosse unívoca, assim como o conceito de SER não é, pois ultrapassa o parmenediano. E digo mais, nem o conceito de Semiótica é unívoco, como sabemos. Para mim ela se aproxima muito mais da filosofia do que da Semiologia de Saussure.
 
Tirando a clara intenção estética do ato de fazer Poesia, não consigo ver diferença entre o que Eco disse sobre o que o poeta faz e o filósofo faz. Ambos, a meu ver:
“(…) assumem como sua tarefa a substancial ambiguidade da linguagem e tentam explora-la para dela fazerem sair, mais que um excedente de ser, um excedente de interpretação.”
E como poderia ser diferente? Talvez a poesia se destaque pelo jogo lúdico de contrastes que brinca com a forma, a fonética, a métrica (talvez), ou seja, o impacto estético como parte do resultado, muitas vezes buscando a ambiguidade de propósito. Muitas vezes vai mais longe, por isso mesmo, que o Filósofo. Mas não vejo como diferencia-los. Ao menos vejo claramente poetas refletirem filosoficamente para compor suas obras, assim como vejo filósofos recorrendo a poesia para expressarem suas reflexões abertas e ensaísticas, como faz o próprio Eco.
 
Existe uma diferença na forma, mas ambos comungam do mesmo Objecto Dinâmico que nos faz produzir signos.
 

Notas e Referências Bibliográficas
1 – NIETZSCHE, Friedrich W. Obras Incompletas - Coleção os Pensadores. São Paulo, SP: Nova Cultural, 1996.

2 – Mesmo as Cosmogonias em que há unidade constitutiva, muitas delas postula uma dualidade primordial que chega à unidade a partir da contenda da Ordem e do Caos. Em outras, essa unidade constitutiva é algo indiferenciado, o próprio Caos visto em sua indiferenciação e contendo tudo. Ou seja, essa unidade caótica não é unidade, é diversidade indiferenciada. A ordem inicia-se na ação espiritual humana de diferenciação, nomeação e ordenamento de acordo com seus sentidos. É claro, a partir dessas observações, que a posição que postulou para a posteridade um SER estático e teleológico cumpria um projeto político determinado no controle e dominação do mundo. Não serei ingênuo de dizer que esse projeto valeu ao homem seu predomínio na Terra, mas também não serei leviano de legitima-lo pelo que ele proporcionou de subjugo do homem pelo próprio homem.

1 comentários:

Vanessa Souza Moraes disse...

Adoro Umberto Eco!

Obrigada! O espaço é uma delícia de postar - diariamente.

Incluí o seu no meu Blogroll - nem sabia que tinha este nome, rss.

Mande sim! O Amálgama é ótimo.

Beijo.

PS: Disposição transborda-me, rs. Até deixa de ser virtude...

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