sábado, 2 de janeiro de 2010

O Bambu da Ticiane

caminho-bambu-getty Não gosto muito, principalmente por e-mail, de mensagens natalinas ou de ano novo. Acho, na verdade, uma coisa meio hipócrita, enviada a montes de gente, sem um direcionamento pessoal. Por vezes as mensagens são pura pieguice. Nunca me manifestei contra, ainda mais publicamente, afinal não é bom ferir suscetibilidades, principalmente de amigos. Só as “correntes” que, quando recebo, protesto mesmo.

O caso do Bambu da Ticiane é diferente. É diferente pelo próprio teor da mensagem (ela precisa ser coletiva mesmo) e também pelo simples fato de às 23:01 h exatamente, eu ter recebido um torpedo dela em meu celular dando feliz 2010. E como foi bom, como foi especial. Talvez ela nem saiba o quanto me fez bem ser lembrado (com tantas coisas que ela deveria estar fazendo na hora, pelo menos 3 cidades distantes de mim) e pego o celular para me desejar um bom ano. Infelizmente não pude responder (vergonha, estava sem crédito rs).

Hoje, em meu e-mail recebi uma mensagem da Tici. Chamava-se O Bambu Chinês. Constava eu como destinatário com vários outros amigos queridos que compartilharam conosco anos de estudo em filosofia e uma amizade inquebrantável além de nossas formações. O e-mail dela, mesmo coletivo, foi só reforço do carinho especial que ela demonstrou na noite anterior, ajudado, claro, pela reflexão interessante que ela suscitou nesse cansado filósofo de 2009, mas esse pretenso renovado filósofo de 2010. O texto é esse:

HORTO-CAMPOS_002-784488Depois de plantada a semente deste incrível arbusto, não se vê  nada por aproximadamente 5 anos, exceto um lento desabrochar de um diminuto broto a partir do bulbo.

Durante 5 anos, todo o crescimento é subterrâneo, invisível a olho nu, mas uma maciça e fibrosa estrutura de raiz que se estende vertical e horizontalmente pela terra está sendo construída. Então, no final do 5º ano, o bambu chinês cresce até atingir a altura de 25 metros.

O bambu chinês nos ensina que não devemos facilmente desistir de nossos projetos e de nossos sonhos. Em nosso trabalho especialmente, que é um projeto fabuloso que envolve mudanças de comportamento, de pensamento, de cultura e de sensibilização, devemos sempre lembrar do bambu chinês para não desistirmos facilmente diante das dificuldades que surgirão.”

A perspectiva “meio auto-ajuda” do último parágrafo não deixa de ser uma ótima reflexão para o início de um novo ciclo e uma boa mensagem para que amigos reflitam e possam procurar meios de terem paciência e persistência; palavras que às vezes (quando não sempre) se opõem à ousadia e criatividade. Mas não é bem assim. É algo como nos diz Cristina Aich em seu Blog do Portal The News Life (um blog meio auto-ajuda para organizações, mas muito legal):

Persistência e Paciência... muita fibra para chegar às alturas e, ao mesmo tempo, muita flexibilidade para se curvar ao chão” – AICH, Cristina. Blog The News Life. Post do dia 17/04/07.

Ela faz uma observação interessante nessa perspectiva, pois é notória a referência délfica ao Méden Agan (nada em excesso) levada à virtuosidade no pensamento de Aristóteles; ou seja, devemos procurar um meio termo justo; temperança, e exercer nossa virtuosidade: ser o que somos em toda nossa potencialidade. A fibra daria a firmeza (base, autoconfiança, auto-estima) necessária para sustentar um crescimento efetivo, ao mesmo tempo em que a flexibilidade nos daria condições de nos dobrarmos aos ventos e às intempéries sem risco de quebra (aceitar as mudanças; as fatalidades). Podemos, no entanto, ampliar isso filosoficamente.

nietzsche_021 Por que não trazermos Nietzsche a esse diálogo? O Amor Fati, o “dobrar-se” ao necessário, jamais poderá nos fazer desistir da construção estética rumo a nosso projeto existencial de expansão de potência. Viver nessa incompletude, mas na busca da possibilidade de completude, é o que nosso estagirita chama de eudaimônia: nada mais que a virtude do Méden Agan.

Mas esse equilíbrio, muitas vezes requer o desequilíbrio. Não sabemos o que equilibrar se não sentirmos o que está em desequilíbrio. É preciso nos superar para saber o que somos; transbordar potência para regula-la. O equilíbrio é o diálogo entre Dioniso (o excesso) e Apolo (a contenção): um mostra e o outro retém e conserva o que serve e é útil.

Aristóteles nos diz:

Ora, a virtude relaciona-se com paixões e ações em que o excesso é uma forma de erro, tanto quanto a carência, enquanto o meio termo é a forma de acerto digna de louvor; estar certa e ser louvada é característica da virtude.” (ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco, Livro II, 6 - 25, p. 48)

aristoteles1 É importante salientar aqui que Aristóteles se refere ao excesso “quando” ele se apresenta como forma de erro e não a qualquer excesso. A desmesura, o transbordar, a embriaguez potencializadora, podemos dizer, nem sempre será um excesso “como forma de erro”. É para Nietzsche, ao menos, a garantia de acerto; de se chegar ao certo e trazer o equilíbrio: é preciso ir além para voltar sob novas perspectivas. Claro é que para isso, deve-se ter como pano de fundo o valor supremo de toda existência: a vida. É ela, tida como valor máximo, que é consubstanciada como vetor catalisador do equilíbrio entre a necessidade e a liberdade; a paciência e a persistência; a asa e o vôo; Dioniso e Apolo; potência e ato: CRIATIVIDADE.

Nietzsche nos explica onde estaria essa virtuosidade no homem:

Minha fórmula para a grandeza no homem é Amor Fati: não querer nada de diferente, nem para frente, nem para trás, por toda eternidade. Não apenas suportar aquilo que é necessário, muito menos dissimula-lo — todo idealismo é falsidade diante daquilo que é necessário — mas sim ama-lo...” (NIETZSCHE, Ecce Homo - Por que Eu Sou Tão Inteligente. § 10, p. 67-68)

Esse Amor Fati seria simples resignação se, em sua perspectiva, Nietzsche não nos trouxesse a desmesura, o excesso, a Vontade de Potência como pólo dialético ao enfrentamento do trágico: só nos reconstruindo constante e esteticamente (portanto, recriando-nos) é possível amar o destino, o necessário.

bamboo É claro que um Bambu Chinês não faz isso. Será mesmo? A analogia se estende à capacidade de uma introspecção humana que não é mera re-flexão de si mesmo, mas um diálogo introspectivo além do bem e do mal que nos abre às nossas possibilidades e nos torna, assim, virtuosos: “eudemoníacos” (?). E para isso é preciso o excesso, o transbordar de potências, de forças criativas limitadas pela necessidade. Podemos aludir que o interior do bambu é pura intensidade tortuosa de potência pronta a se expandir. Ao longo de 5 anos ela reúne todas as possibilidades e explode em ato naquilo que é necessário para ele ser o que é: Bambu Chinês. Ele apenas é o que é. Não fica 5 anos se planejando para ser Bambu. Ele não desiste nem insiste, não persiste nem se impacienta. Ele apenas cumpre o que lhe cabe. Por vezes, essa expansão de potência leva a uma ou outra mutação que pode, dependendo do ambiente, originar outra espécie de bambu.

E nós, seres humanos? O que fazemos é nos adaptar. Não aceitamos nossas limitações e exteriorizamos nosso conforto ao ambiente, para não termos que expandir nossos limites e nos fecharmos numa introspecção que nunca explode em ato. Um alerta de Nietzsche, mais uma vez, sobre isso falando de Descartes:

Ainda há ingênuos acostumados à introspecção que acreditam que existem "certezas imediatas", por exemplo, o "eu penso" ou, como era a crença supersticiosa de Schopenhauer, o “eu quero”; como se nesse caso o conhecimento conseguisse apreender seu objeto pura e simplesmente, enquanto "coisa em si" sem alteração por parte do objeto e do sujeito. Afirmo que a "certeza imediata", bem como o "conhecimento absoluto" ou a "coisa em si" encerram uma contradictio in adjecto; seria pois, esta a ocasião de livrar-se do engano que encerram as palavras.” (NIETZSCHE, Além do Bem e do Mal - Primeira Parte: Dos Preconceitos dos Filósofos. 16, p. 25)

Ou seja, Nietzsche nos diz que respondemos já com a causa em mente, partindo de pressupostos. A introspecção só daria certo se a fizéssemos como o Bambu Chinês: sem causas especuladas, apenas “sendo” o que somos. A causa especulada já direciona a ação, impede a criatividade e não testa os limites, ou melhor: não nos leva a ser o que somos, e sim o que esperam que sejamos. Esse seria o “meio termo” de Aristóteles ou seria melhor abrirmos mão de concilia-lo com Nietzsche e ficarmos com a interpretação corrente?

Podemos chamar Epicuro nessa conversa. Ele desloca esse Méden Agan para outra perspectiva. Precisamos buscar o prazer como fonte de nossa felicidade, porém não podemos nos entregar ou depender do prazer que não possa ser encontrado em nós, que advenha, portanto, de fontes circunstanciais. A questão é como se goza o prazer: eles não podem ser minados pelo desespero de perde-los, mas pelo prazer que proporcionam. Por isso temos que estar preparados para a dor tanto quanto para o prazer: Amor Fati.

Ticiane e Eu O Bambu Chinês da Ticiane, hoje, não me ensinou nem o que trouxe no e-mail nem o que vemos em todos esses sites motivacionais e de auto-ajuda. Ele pôde nos dar uma perspectiva de que a interiorização pode ser persistência criativa e conciliação de potência com necessidade: sermos o que somos e, por conseguinte, felizes.

É essa mensagem e reflexão que gostaria de devolver com os meus mais carinhosos e sinceros votos de um feliz 2010, tanto a minha querida amiga que suscitou isso, quanto aos meus amigos queridos que vivem intensamente essa busca conjunta.

Feliz 2010 a nós: bambus chineses (Aline, Ticiane, Sandra, Bruno, Danilo, Daniel, Grego, Bárbara, Paulo, Michele, Cris, Anderson, Justina, Margarete, Azemuth e todos aqueles que estão borbulhando suas potências para explodir no co-pertencimento de um mundo cada vez mais novo e renovado).

 

Obras Citadas

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução: Pietro Nasseti. São Paulo, SP: Martin Claret, 2004.

NIETZSCHE, Friedrich W. Além do Bem e do Mal - Prelúdio a uma Filosofia do Futuro. Tradução: Márcio Pugliese. Curitiba, PR: Hemus, 2001.

—. Ecce Homo: de como a gente se torna o que a gente é. Tradução: Marcelo Backes. Porto Alegre, RS: L&PM, 2003.

—. Obras Incompletas - Coleção os Pensadores. São Paulo, SP: Nova Cultural, 1996.

1 comentários:

Marga Vale disse...

. . .

Miranda,

O que posso dizer? Muitas vezes é assim que fico: sem palavras, porque acaba me parecendo bobagem tudo o mais que se disser. Eu só tenho a te agradecer por me permitir participar um pouquinho, e a uma certa distância - pelo menos geográfica, da tua trajetória constante de erguer-se e flexibilizar-se simultaneamente, sem perder a ternura, a esperança e o encantamento.

Um grande abraço.

Margarete

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