terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Políticas da Imanência…¹

Img2361 “No começo era o movimento.

Não havia repouso porque não havia paragem do movimento. O repouso era apenas uma imagem demasiado vasta daquilo que se movia, uma imagem infinitamente fatigada que afrouxava o movimento. Crescia-se para repousar, misturavam-se os mapas, reunia-se o espaço, unificava-se o tempo num presente que parecia estar em toda a parte, para sempre, ao mesmo tempo. Suspirava-se de alívio, pensava-se ter alcançado a imobilidade. Era possível enfim olhar a si próprio numa imagem apaziguadora de si e do mundo.

Era esquecer o movimento que continuava em silêncio no fundo dos corpos. Microscopicamente. Ora, como se passaria do movimento ao repouso se não houvesse já movimento no repouso?

No começo não havia pois começo.”

(GIL, José. Movimento Total: O Corpo e a Dança. São Paulo: Iluminuras, 2004, Prólogo, p.13)

O espaço e o tempo como estruturas a priori e inerentes à sensibilidade do ser humano, conforme nos legou Kant², constitui na tradição o nosso campo perceptivo. Não foi pensado, porém, que essa estrutura não é o que é a não ser pela representação que fazemos na experiência imediata e dentro de uma lógica causal que, evolutivamente, se tornou uma espécie de modus operandi humano.

Kant já inverte o sentido da percepção espaço-temporal, tirando-a das coisas em suas relações consigo mesmas e colocando-as no sujeito cognoscente. Mas isso não resolve a questão. Antes da relação, há um arcabouço que direciona nossa percepção além de sua experiência primordial e Kant não chega até ele por considera-lo dado e a priori.

Gilberto Miranda Jr. O conhecimento dado pela pretensão de apreensão causal e conseqüente domínio e controle do que se conhece, jamais permitirá o movimento e as zonas limítrofes indistintas, por isso estatiza a realidade: constrói modelos estáticos que apreende as coisas por aquilo que as identifica por sua finalidade contextual ao homem histórico. Um modelo conceitual da realidade já está pronto e basta, por identificação, juntar as coisas em suas devidas “gavetas”, preenchendo esse mundo.

Não podemos negar que esse é um modo eficiente de se conseguir o que queremos. Controlar e adquirir o poder de direcionar o que nos atende em nossas necessidades foi e sempre será o grande diferencial humano enquanto espécie. Mas é inegável que nós, seres humanos, precisamos ir além disso, pois senão em seu nome iremos esgotar os recursos do mundo.

Por ocasião de um trabalho de faculdade onde tentava apreender o sentido do tempo na religião, escrevi:

“Concordamos que ele [o tempo] é subjetivo, mas não pelos motivos dados por Kant. Tentaremos demonstrar ao longo desse trabalho que, embora não haja objetividade a ser conhecida da noção de tempo, é pela experiência do cotidiano e dos fenômenos de forma intersubjetiva que vivenciamos um tipo de tempo específico, sendo de forma subjetiva que o representamos. Dessa forma, mesmo concordando que o tempo seja subjetivo, não concordamos que ele seja uma estrutura apriorística que determine nossa possibilidade de conhecimento e juízo sobre os fenômenos como queria Kant. Concordamos com Merleau-Ponty na medida em que ele concebe a noção de tempo nascendo das próprias coisas em sua intersubjetividade conosco.”

Que pode ser reforçado nas palavras de Merleau-Ponty:

Portanto, o tempo não é um processo real, uma sucessão efetiva que eu me limitaria a registrar. Ele nasce de minha relação com as coisas. Nas próprias coisas, o porvir e o passado estão em uma espécie de preexistência e de sobrevivência eternas; a água que passará amanhã está neste momento em sua nascente, a água que acaba de passar está agora um pouco mais embaixo, no vale. Aquilo que para mim é passado ou futuro está presente no mundo

(MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da Percepção, p. 551-552)

movimento_estroboscopico_mulher_nua_3 No real coexistem todos os tempos e espaços, dos quais fazemos a “nossa realidade” a partir da perspectiva (ou intencionalidade) com que olhamos para eles e organizamos o mundo para atender nossos interesses. O realista ao ler essas linhas dirá então que somos solipsistas. Pois decerto que somos. Mas isso não significa que construímos o real, mas que construímos a representação do real para nós, em um Logos coletivo que reveste toda percepção de uma simbólica.

Talvez um dos grandes motivos para que o corpo se relegue à segunda categoria existencial (postulado tradicional desde a filosofia platônica) seja a clara noção de que, pelo corpo, somos obrigados a ser sinceros no que tange à responsabilidade de escolher como ver o mundo. Há, pelo corpo, tantas perspectivas criativas, mesmo dentro de suas limitações físicas, que uma mente que precisa ser controlada e comandar nossas ações a partir de uma política teleológica transcendente, se torna uma transgressora perigosa.

A questão aqui não é o corpo comandar a mente ou vice-versa. A questão é resgatarmos uma totalidade em que as perspectivas das quais o corpo nos abre perceptivamente possam também engendrar modos de pensar fora de uma teleologia transcendente. Isso nos resgataria a responsabilidade política, a partir de uma imanência que comporia uma realidade sob nossa tutela. De certo que é perigoso e ameaça quem precisa ter o controle sobre os outros para que tudo atenda seus interesses.

Estou no início da leitura desse fantástico livro de José Gil. Ao longo do tempo trarei mais excertos e análises.

 

Obras Citadas

GIL, José. Movimento Total: O Corpo e a Dança. São Paulo: Iluminuras, 2004

KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Edição: Coleção os Pensadores. Tradução: Valério Rohden. São Paulo, SP: Nova Cultural, 1996

MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da Percepção. Tradução: Carlos Alberto Ribeiro de Souza. São Paulo, SP: Martins Fontes, 2006

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Notas

1 – Políticas da Imanência é o título que a Editora Iluminuras deu à proposta editorial para a publicação do livro de José Gil e que tem como pano de fundo desafiar a metafísica capitalista naquilo que ela determina do que deve ser pensado na modernidade. Segundo a editora:

(…) é uma proposta editorial para este momento em que se redefine o campo político, na contramão da cena política midiatizada e das teorias que a alimentam.”

Antes, a editora faz uma pergunta, a qual se insere na proposta desse post e da trajetória do próprio Blog Filosofando na Penumbra:

Qual pensamento pode assumir a tarefa de repercutir as urgências daqueles cuja força de ação, expressão e associação foi desarticulada pelo capital?”

Em minha opinião, a resposta a essa pergunta encontra-se no pensamento que desarticula os formalismos tradicionais e reconstrói disjunções e distinções tidas como definitivas. José Gil e os autores com quem ele dialoga em seu livro, com certeza, representam esse pensamento múltiplo e urgente.

2 – Na Primeira Parte da Doutrina Transcendental dos Elementos (Estética Transcendental) de seu livro A Crítica da Razão Pura, Kant postula que o tempo e o espaço são dados a priori por serem afins com a própria estrutura cognoscente do sujeito.

1 comentários:

Daniel Alabarce disse...

roubei a primeira citação desta sua postagem! Que é absurdamente linda!

falow, gilberto!

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