terça-feira, 14 de abril de 2009

Facas, Gumes e Reflexões sobre a Cegueira

Esse artigo é uma reflexão incidental sobre o artigo de minha amiga Paula Moiana da Costa, professora de biomedicina da Unipar, publicado em seu Blog (em parceria com Caio Mariani) Minestrone a Bolognesa. O artigo está em duas partes e chama-se Facas Cegas de Um Só Gume (clique para lê-los: As Idéias, parte 1 e Os Fatos, parte 2).

Parcialidades

Olhar de olhares 70x100 cm - Tela de Teresa Robal Não tem como não concordarmos com a tese que enxerga a ciência procurando a melhor descrição possível da realidade tanto quanto for alcançável a capacidade humana de observação. Porém é difícil hoje, na contemporaneidade, ainda mais com o aprofundamento dos estudos epistemológicos feministas e na concomitância das considerações filosóficas de Habermas, Kuhn, Derrida, Bachelard e outros, não considerarmos que essa "melhor descrição possível" traz em seu bojo certa determinação interna de cada pesquisador; ditada por seus próprios contextos culturais e históricos e confirmados e reproduzidos por toda a comunidade científica.

E desde sempre parece ter sido assim. Esse ideal de um olhar neutro do ser humano para a natureza com o intuito que ela própria se revele em seus segredos mais recônditos, não passa disso: um ideal. Um ideal talvez lockiano configurado por seu conceito de Tábula Rasa. Tanto culturalmente quanto por nossa própria condição de seres-no-mundo, da carnalidade pontyana, todo o nosso olhar parece já se encontrar pré-configurado para ver determinadas coisas, mesmo que uma infinidade de outras estejam ali, bailando à nossa frente, se exibindo e querendo nos seduzir para serem notadas. (Vide nota 1)

Parece então que somos determinados a sermos parciais. Todo olhar voltado a algo pode se arvorar a ser neutro e imparcial, mas a explicação do que se viu, a construção de nexos daquilo que se precipitou aos nossos olhos, sempre terá como pano de fundo as crenças e a contextualização histórica do dono do olhar. Seria esse nosso determinismo? Se for, ele é muito mais poderoso que um decantado determinismo biológico que os defensores do "Nurture" acusam as ciências biológicas.

Talvez seja possível ir mais além. O nosso olhar é, antes de mais nada biológico. Já possui suas próprias limitações no espectro que consegue captar a luz. Enquanto ferramenta de uma vontade, de um ato volitivo, ele já nos determina a ver somente aquilo que ele é capaz fisicamente. O ato de olhar, porém, ele não é apenas determinado pela fisiologia de nosso órgão, mas é condicionado por nosso psiquismo totalmente imerso num mundo que se dialetiza com a realidade percebida o tempo todo, determinado por nossas raízes históricas e sociais. Até a própria realidade que o olhar dialoga está impregnada de nossa contextualização.

É de uma inocência ímpar acreditar que nossa maior determinação seja biológica. Se boa parte de nosso comportamento emerge pela confluência de fatores que nos trouxeram evolutivamente até aqui, não há dúvida que grande parte dele e que abarca quase nossa totalidade, é determinado por nossa cultura e contextualização histórica. Mesmo assim parece ser o gênero humano pródigo em romper seus próprios determinismos, sejam eles biológicos ou culturais.

Conseguir ir além nos possibilita até subverter o que naturalmente tendemos a pensar, isto é; que sofremos uma determinação biológica mas a rompemos na construção de nossa cultura. Parece-me muitas vezes ser exatamente o oposto: a natureza nos dotou da capacidade de rompermos qualquer determinismo, ao passo que culturalmente nos prendemos em idealismos que nos determina a sermos e pensarmos de uma determinada maneira, inclusive nos achando no direito de vigiar e punir o outro se por acaso não assumir nossa maneira de ser. E esse determinismo se impregna até no fazer ciência.

Olhares Possíveis

olhares Meu olhar particular, que não se arvora a ser imparcial nem neutro, parece trazer Heráclito no cerne das questões trazidas pela Teoria da Evolução de Darwin. Parece-me que a natureza nos dotou de uma capacidade infinita e indomável de nos indeterminarmos. A realidade como eterno devir, parece refazer-se a cada segundo em suas potencialidades. Aliás, parece justamente romper com a idéia aristotélica de potência e ato, e se circunscrever no terreno das possibilidades contingenciais. Contingencialmente, nossos genes parecem refazer-se em suas potencialidades e se expressar (se atualizar) de acordo com as possibilidades abertas pelo ambiente que interage. Essas noções depreendidas da própria leitura da obra de Darwin parece derrubar com a idéia de que o evolucionismo traz em seu bojo o determinismo. Nem ele, nem a própria natureza, cuja decodificação ainda não temos nada superior à Teoria da Evolução.

Se as dúvidas de Darwin começaram no questionamento da teleologia e principalmente no questionamento do fixismo, elas trazem por consequência a ausência de um finalismo determinístico numa Dança Cósmica do constante devir como fundo, ou nas palavras de Julian Marias: como “mobilidade constitutiva”.

Darwin, sem noção de genética alguma, sem nem sequer ter lido os trabalhos de Mendel existentes antes de sua teoria, por pura observação naturalista captou todas essas possibilidades num exercício raro de indeterminação possível ao olhar humano. É difícil de imaginar que o próprio olhar naturalista de Darwin quisesse ver o que ele viu para construir os nexos que construiu como se houvesse já no olhar uma estrutura teorética de pano de fundo. Embora difícil, é algo que precisará sempre ficar em aberto. Mas temos que levar em conta que, segundo seus diários, embora já procurasse por algo, suas idéias tendiam a uma teleologia necessária que mais tarde ele foi obrigado a abandonar a favor daquilo que observou (ou do que viu como oportunidade de interpretar).

De qualquer forma, na construção de nexos daquilo que viu, Darwin propôs um mecanismo que traduzia também todo um contexto histórico que vivia. A efervescência da era industrial, o questionamento do fixismo por uma ideologia liberal burguesa e protestante, que questionava um poder central e privilégios natos, pode ser vista como pano de fundo à parte dos nexos que Darwin construiu.

Há de se separar a forma de olharmos a obra máxima de Charles Darwin. Uma é considerarmos apenas sua proposição conclusiva. Outra é acompanharmos e construirmos nossos próprios nexos a partir das longas descrições que ele faz daquilo que viu, tateando todas as possibilidades antes de concluir. Essa é a maior riqueza que ele nos lega, pois realmente dá a impressão de que ele chegou bem perto da imparcialidade ao descrever o que viu antes de construir a conclusão que tirou. A própria conclusão e formulação teórica permite vários olhares sobre ela: tanto contextualizados na episteme da sua época, como fruto de uma força de vontade em busca da imparcialidade.

Essa postura de Darwin, num primeiro momento apenas descritiva, nos possibilita olhares plurais e variados numa natureza que não precisa de um olhar próprio sobre si e se abre aos curiosos da maneira que eles querem vê-la dentro de seus próprios contextos. Um desses olhares vai em sentido oposto daqueles que querem ver um determinismo necessário tanto na natureza biológica quanto na nossa cultura.

De que forma se configura nosso comportamento? É determinado pela cultura ou por nossa estrutura genética?

Determinismo x Indeterminismo

É curioso como nos perguntamos o que nos determina. Essa pergunta já direciona nosso olhar para encontrar “o” determinante. Não passa por nossa cabeça “determinada” que talvez possamos ser indeterminados, mas que assumimos determinações por algum motivo ou mecanismo que ainda não entendemos. Um dos caminhos contrários à boa Filosofia parece-me ser justamente formular a pergunta de forma equivocada. Seria esse o caso?

Evocando ainda as evidências darwinianas e nosso velho e obscuro Heráclito, essa confluência contingencial de fatores que trabalham dialeticamente numa teia cuja síntese é um equilíbrio situacional, desemboca em estados que não nos dá garantia alguma que não irá mudar ao longo do tempo. Portanto, concordando com a Paula, determinar como natural o direito que emerge de nossos instintos é falacioso. Nossos instintos mudam de geração em geração, e hoje entendemos que a estrutura genética tem flexibilidade na maneira de se expressar diante de situações específicas.

Temos então, pelo menos, cinco lados nessa “moeda pentagramática”:

  • De um lado a variabilidade aleatória que abre possibilidades contínuas e diferenciadas de expressão;
  • De um outro um ambiente fluídico que muda interagindo num todo interligado e que favorece a expressão que melhor estaria adaptada;
  • De outro a variabilidade específica também moldando sua expressão ao ambiente;
  • De outro lado ainda o próprio ambiente sendo modificado pela interação das formas de vida e seus modos de expressão;
  • E de um outro lado a consciência atuando em diversas direções influindo e sendo influenciada nisso tudo.

Como então nos acharmos determinados por algo? Como não vermos desde dentro de nós o clamor irresistível da mobilidade constitutiva que nos faz todos, individualmente e enquanto espécies, inacabados, em construção, fluídicos frente às possibilidades estéticas que a confluência de todas as cores, gostos, sons, texturas que nos fazem irresistivelmente querer e sermos obrigados a experimentar?

Parece-me que somos sim determinados. Determinados por tudo isso a sermos indeterminados. O que nos determina então é outra coisa: A Cegueira de Gume Afiado.

A Cegueira de Gume Afiado

Por que então, sabendo-nos indeterminados precisamos da tutela de algo parmenedianamente fixo, imutável e seguro para pautarmos nossa vida? José Saramago pareceu-me ter sido muito feliz nas reflexões que fez em seu Ensaio Sobre a Cegueira. Algumas reflexões suscitam-se irresistivelmente em nossas mentes ao ler o livro e assistir o filme brilhantemente dirigido pelo brasileiro Fernando Meirelles. Alguns pontos podem ser destacados para minha argumentação.

A cegueira pode vir pelo excesso de luz. A metáfora parece-nos “clara”. A idéia de que a racionalidade, a razão, posta desde o Iluminismo nos daria a resposta pra tudo, nos trouxe uma cegueira imensa que desemboca na contemporaneidade. Assim como no filme; cegos, desorientados por tanta luz que nos tira a visão, caímos fácil na barbárie, na destemperança, na falta de rumos e sentidos. É preciso descer ao mais básico do gênero humano, ao mais primitivo, para nos vermos crus e começarmos a nos reconstruir como sociedade. Isto é, precisamos nos “incondicionarmos”, nos “indeterminarmos”. Não, talvez, para saber quem somos, mas talvez para nos reconstruirmos naquilo que queremos ser, dialeticamente construídos entre o desejável e o possível.

O esclarecimento parece nunca ser completo, pois nosso olhar precisa da sombra pra dar contraste ao que vê. Esse é nosso determinismo biológico que nos dá a limitação daquilo que podemos alcançar. No entanto, discordando e concordando com Kant, a base do esclarecimento possível só pode ser pautada pelo exercício irrestrito da liberdade e da autonomia.

A luz excessiva, aquela que direciona nosso olhar a uma única direção (a razão ou a religião), nos rouba a espontaneidade de nos vermos indeterminados, livres, criativos e possíveis. Da mesma forma as trevas, a sombra excessiva do controle que oprime e desinforma nos coloca sob a responsabilidade da tutela alheia e instrumento de domínio de interesses que em geral passam à largo de nossas necessidades (talvez por isso insisto em filosofar na penumbra rs).

A cegueira, em ambos os lados, tem gumes afiados que cortam a carne das gentes sem que percebamos. Só nos damos conta quando, esvaídos em sangue, nosso corpo queda à mercê dos opressores. É a liberdade e a autonomia em dialogarmos na coletividade que nos garante o exercício da própria mobilidade constitutiva da natureza.

A cegueira da fixidez, seja ela pela pretensão de um esclarecimento total positivista e iluminista (excesso de pretensa luz racional), seja ela pelo tradicionalismo religioso (excesso de pretensa luz espiritual), nos faz conviver com paradoxos que facilitam que nos submetamos à tutela de terceiros frente ao nosso destino. A cegueira que nos irresponsabiliza pelo nosso próprio destino nos deixa nas mãos dos poucos “iluminados”.

É tão cega ou mais perniciosa que a cegueira da razão, a cegueira do dogma que querendo que a natureza seja ouvida (como suposta tradução da vontade divina), é contra a morte provocada artificialmente (o aborto), mas a favor da vida mantida artificialmente (a eutanásia). Seria ela contra, portanto, à possibilidade da eternidade dada pela ciência? Os critérios são contraditórios, típico de olhares que não assumem que não podem enxergar tudo.

Essa mesma tradição fixa os papéis sociais humanos com base numa suposta criação finalística e determinada, denunciado pela Teoria de Gênero feminista que tem seus primórdios nas reflexões de Simone de Beauvoir:

"Ninguém nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse produto intermediário entre o macho e o castrado que qualificam o feminino." - Simone de Beauvoir em O Segundo Sexo de 1.949.

Simone de Beauvoir Essa frase de Simone sintetiza, por pura intuição filosófica, o que seria mais tarde a coluna basilar da teoria feminista. Além disso, ela parece se encaixar muito bem como todos os gêneros recebem suas determinações e condicionamentos para serem exatamente o que esperam deles, com base naquilo que pretendem (os que detém o poder) atingir como ideal de cidadão a ser controlado e vigiado aos termos de Foucault.

Embora possamos dizer que o homem se "tornou" o que bem quisesse e submeteu e oprimiu todos os gêneros e inclusive grande parte de si mesmo, determinando tudo como deveria ser de acordo com suas intenções particulares, culpar um gênero inteiro como se houvesse existido ações coordenadas e intencionais de quem usurpou poder e bens para defender seus próprios interesses parece ser exagero. Podemos até dizer que, fosse mulher, jamais fariam isso. Mas dizer isso é determinar uma essência no homem da mesma forma como ele determinou a das mulheres para melhor submetê-las a cumprir suas determinações.

A cegueira tem gume afiado. Ela nos tira as possibilidades de sermos mais e buscarmos ser diferentes. Nos cativa e nos embota no fixismo que interessa a poucos.

Nem a ciência nem a tradição tem as respostas. As respostas somos nós que damos, podendo estar permeados pelo conforto que a religião que não domina e oprime pode dar, e pelas descobertas científicas que podem nos fazer enxergar mais longe. A interpretação do que a ciência nos lega é histórica, contextual e móvel, quando experimentado o doce sabor da liberdade e da autonomia.

Natural e Cultural

Para finalizar fico com a frase da Paula:

Ambos (naturalistas e culturalistas) não percebem que ao modificar o meio, modifica-se a expressão da característica, de modo que ela sempre resulta do meio, mesmo que seja inata.” Paula Moiana da Costa.

Parece-me encerrar nessa frase os 5 pontos que saliento na “moeda pentagramática” que a vida negocia com o universo. A questão parece-me ser epistemológica. Ela nos dá a base do próprio movimento da vida e da possibilidade do conhecimento desse movimento. A pretensão de uma posição absoluta e de um olhar privilegiado para se emitir juízos sobre as coisas se constitui no maior exercício de cegueira que o ser humano pode se impor.

É natural que mudemos constantemente. É cultural e histórico queremos deixar de enxergar essa mudança e fixarmos as bases de qualquer entendimento possível das coisas. Culturalistas e Naturalistas são históricos, logo são tão cegos como todos nós.

Agradeço à Paula pela inspiração, mas já refletia sobre isso, em outros âmbitos desde Novembro de 2007: Naturalidade e Meio: http://miranda-filosofia.blogspot.com/2007/11/reflexes-i-entre-naturalidade-e-o-meio.html

Nota

(1) Em meu entendimento, cada ciência, na construção de seu método científico, tem como meta principal a tentativa sistemática de neutralizar intencionalidades que interfiram na aferição de resultados. Mas o método não garante a direção em que o olhar do pesquisador estará voltado na construção dos nexos que darão corpo teórico explicativo ao fenômeno observado. Um dos balizadores é o resultado, mas ele pode dar suporte às mais inverossímeis teorizações, que serão descartadas somente quando nossa capacidade de observação aumenta. Outro balizador que controla o primeiro, é a aderência a um corpo teórico já consolidado e robusto. Isso significa que uma teoria que não tem respaldo em outra já consolidada, dando continuidade a ela, tende a ser desacreditada com mais facilidade que outra, que chega aos mesmos resultados, mas é aderente a um corpo teórico já consolidado. Tudo isso, de certa forma, dá coerência mas engessa a ciência, e o avanço parece ser muito mais lento do que poderia. Isso daria até um outro artigo.

2 comentários:

Paula disse...

Miranda,

como sempre, "matou a cobra e mostrou o pau". hehe

Mas eu questiono esse indeterminismo. Sim, percebo que as variáveis que nos afetam são múltiplas e fluidas, e talvez por estas características nos remetam á sensação de liberdade.

Quando falamos de expressão gênica, creio que estamos em perfeito acordo. Os genes limitam as possibilidades, mas não nos levam inexoravelmente a um determinado sentido. Dependem do meio.

Só que o meio, apesar de parecer, não é aleatório. Eu tenho algumas restrições à idéia probabilística do Universo. As coisas ocorrem por acaso, é claro, mas no sentido de que não há uma finalidade para elas ocorrerem. Mas as variáveis ocorrem em decorrência de outras variáveis. As probabilidades só são probabilidades porque não conhecemos todas as variáveis envolvidas.

A partir do momento em que não podemos ser outros, e que o meio que atuará sobre nós é sempre consequência de uma cascata de variáveis interrelacionadas, estamos presos às contingências. Temos um genótipo amplo, mas limitado. Um meio multifatorial, mas restrito e preso á causa/consequência. Não consigo ver essa "mobilidade constitutiva" a que vc se refere. A própria consciência não é capaz de se desligar de sí mesma para nos livrar do determinismo acarretado por tudo o que nos cerca.

Eu creio que naturalistas e culturalistas são excessivamente parciais. Mas percebo o mundo determinístico ao extremo, só que com fatores mais complexos do que os habitualmente utilizados nas argumentações a favor de um ou outro.

Talvez seja a cegueira da fixidez. rsrs

abraços!

Gilberto Miranda Jr. disse...

aff nao consegui pular linha dos subtítulos... desculpe rsrs

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