domingo, 12 de abril de 2009

Teoria, Evolução, Fato e Cientificidade - Questões Epistemológicas – Parte I

Dando continuidade aos artigos/ensaios em comemoração aos 200 anos do nascimento de Darwin e 150 anos da publicação de A Origem das Espécies, opto por começar pelo argumento mais amplamente utilizado pelos detratores de Darwin. Não é raro lermos ou ouvirmos de quem não concorda com a TE de que ela é “apenas” uma teoria. Esse tipo de desdém com a palavra Teoria é curioso e tem origem cultural.

Em geral falam dessa forma por que atribuem um fato como um evento hierarquicamente superior a uma Teoria, como se ambos fizessem parte de uma escala de valores de credibilidade frente à realidade. Para esse tipo de olhar atribui-se fato ao conceito de LEI e Teoria a algo que precisa de comprovação, como se fosse uma mera hipótese ou suposição.

Gosto muito da abordagem sobre esse assunto dada por Stephen Jay Gould no artigo "Evolution as Fact and Theory" o qual os leitores do Filosofando na Penumbra podem ler no original e conhecer um pouco mais sobre esse evolucionista heterodoxo que não só ampliou a compreensão sobre a Teoria da Evolução de Darwin, mas pôde ampliar a própria teoria abarcando fenômenos que ela não contemplava em sua versão original.


O que é Teoria?

O vernáculo “Teoria” vem do grego Theoria e significa contemplação. Embora filosoficamente tenha ganho significado em Platão (que usou esse termo poucas vezes, na República, em lugar de noésis que significa pensamento; ambas no mesmo sentido), o termo ganha estatuto conceitual em Aristóteles; que a usa tanto para descrever a contemplação dos Princípios Primeiros, quanto para fundamentar a ciência política. Aristóteles nos explica que a própria Metafísica (que nele é chamada de Filosofia Primeira) é teorética, isto é, contemplativa.

É nesse sentido grego que o vernáculo “Teoria” ganha estatuto de verdade em ciências. No entanto, ele tem, no senso-comum, outra conotação, que antropologicamente tem origens nos EUA e é nesse sentido que se pronuncia também entre os criacionistas o desdém da Teoria da Evolução ser “ainda” uma teoria.

A cultura americana e anglo-saxã (boa parte protestante, pragmática e criacionista) usa o vernáculo “Teoria” dentro de uma escala de confiabilidade que vai de adivinhação, hipótese, teoria e fato. Para esse senso-comum, que inclusive é adotado por nós no Brasil (apesar de nossa influência também européia), teoria se relaciona com fato numa escala de valores credíveis, fazendo parte de uma hierarquia crescente de certeza. Essa acepção e conotação da palavra “Teoria” não tem a ver com a utilizada em ciências e nem ao seu sentido etimológico grego e enquanto o senso-comum não entender isso, ainda continuará a desdenhar as Teorias Científicas e se apegar a certezas não justificadas impostas por autoridades; sejam elas religiosas ou meramente ideológicas e doutrinárias.

Em ciência, Fato e Teoria são coisas diferentes e não fazem parte de uma escala hierárquica de certeza crescente. Tentemos esmiuçar mais... Teoria tem a mesma raiz etimológica grega que a palavra Teatro. Ambas sugerem significados ligados a contemplação e imaginação internalizadas mentalmente. Em Teoria (Theorein) temos uma contemplação ativa, que significa ver algo em seus aspectos mais abrangentes; o que significa compreender esse algo e dar-lhe um sentido, uma explicação.

Quando essa palavra se latinizou e transformou-se em “contemplare” houve um notável “downgrade” em seu sentido original, assim como aconteceu com as palavras ética e moral, que têm o mesmo significado original, no entanto quando ética se latinizou em moral mudou seu sentido de “modo de ser” para “norma” (isso dá até outro artigo para falarmos a respeito).

Nesse “downgrade” o contemplar ganhou um sentido passivo que não busca um conhecimento daquilo que se está olhando, mas apenas a apreensão sensível daquilo que se vê. O teórico passou a ser contemplador, ganhando sentidos diferentes quando, originalmente, significavam a mesma coisa.

Na Grécia antiga comitivas e embaixadas dos países helênicos eram enviadas às Olimpíadas e nas festas religiosas de Atenas para que “teóricos” pudessem contemplar os espetáculos e narra-los aos que os enviaram da melhor maneira possível. E a narração não era mera descrição, mas sim um entendimento e construção de sentido daquilo que era visto.

Era um contemplar ativo que explicava o fato contemplado. Assistir peças de teatro na Grécia não era apenas iludir-se com o que estava sendo representado, era contemplar o espetáculo para abstrair da representação seu sentido pedagógico e ético. A peça, enquanto fato, fenômeno, necessitava de um olhar teorético para entende-la em toda sua dimensão. Após a latinização do termo, contemplar transformou-se em apenas ver e deixar-se iludir com as aparências que o Teatro mostrava, sem “teorizar”; explicar e apreender seu sentido. Essa noção explica muito da forma como concebemos e usamos a palavra Teoria hoje em dia no senso-comum.

Essas colocações acima são de suma importância para desconstruir a noção do senso-comum que conota “Teoria” como um nível de confiabilidade abaixo do fato. Como eu disse, em ciência, fato e teoria são coisas distintas e não participam de graus de certeza sobre a realidade. Teorizar, portanto, não é colocar algo percebido abaixo do fato, é explicar o fato em suas possíveis e perceptíveis dimensões além da mera afecção dele: é descreve-lo de forma a explicar como ocorre e por que ocorre.

Em suma, como diz Stephen Jay Gould: “Teorias são as estruturas de idéias que explicam e interpretam os fatos.” Logo, não é possível, nem coerente, afirmar que um fenômeno observável descrito numa teoria é menos real do que um fato, pois a teoria transcende o fato, sem negá-lo, para explicar-lhe o mecanismo fenomênico de sua existência e atribuir-lhe um sentido.

Bem, mas precisamos pontuar sobre o que viria a ser um Fato.


O que é Fato?

Fato é um fenômeno observável. Quando falamos que algo é fato, estamos atestando sua existência pelo que conceituamos/intuímos como existência. Há controvérsias epistemológicas entre fato e verdade; na eterna discussão entre realismo x anti-realismo. Fato é uma verdade, seja ela relativa ou absoluta, não deixando de ser uma verdade que diz e atesta a existência de algo.

A questão da existência merece até um artigo à parte também. Existência parece ser uma daquelas palavras conceituais das quais Kant atribuiu às características do tempo e espaço. Existência, portanto, não é um conceito e sim é uma intuição racional a priori a qual sabemos identificar, mas temos imensa dificuldade em conceituar.

Não vou entrar no mérito se a idéia de Kant em relação ao tempo e espaço faz sentido, mas percebo que caracterizamos a existência por que simplesmente nos vemos como existentes, e intuitivamente identificamos coisas que participam de uma mesma condição nossa. Merleau-Ponty chama isso de “carnalidade”. É uma espécie de pré-cognição que a razão apreende a priori por comungar da mesma condição daquilo que lhe afeta. Kant atribui isso a uma razão pura que independe dos sentidos, já Merleau-Ponty a coloca como uma pré-cognição advinda de nossa própria condição de ser-no-mundo.

Meu entendimento é que seja a percepção de um fato que nos afeta enquanto fenômeno, sendo uma realidade que se relaciona ao nosso conceito de existência, que é histórico e consensual, logo relativo a ele. Há quem diga que seja uma verdade absoluta, mas não cabe aqui essa discussão. De qualquer forma, e espero que concordemos com isso, fato é definido como um fenômeno, um evento observável ou sentido ou mesmo percebido que atenda aos nossos critérios intuitivos de existência; localizado espaço-temporalmente.

Com tudo isso, podemos dizer resumidamente que fatos são os dados do mundo como se apresentam a nós, sendo possível tecer uma relação epistemológica entre teoria e fato, e por que eles não estão imbricados numa hierarquia de graus de confiabilidade. Teoria é uma estrutura de idéias que explicam e interpretam os dados do mundo; os fatos.

Toda explicação que, atribuindo sentido ou não, descreve e esmiúça em graus variáveis de minúcia um fato observável, poderia ser chamada de Teoria. Teorizamos sobre as coisas o tempo inteiro. Aliás, parece ser o que nos resta enquanto humano, pois como sujeitos, apartados do objeto, num dualismo que caracteriza a própria civilização ocidental, jamais poderemos nos arvorar conhecer e atestar algo sem que nos apartamos dele para tentar explicá-lo conforme nosso ponto de vista.

É nesse sentido que Teoria, então, precisa ser categorizada frente àquilo a que se propõe sua construção. Os positivistas postularam que existe um grau hierárquico entre as teorias e que as científicas, por seu caráter controlável e empírico merecem maior credibilidade. Poderíamos enveredar por considerações exaustivas para defender um ou outro lado dessa questão. No entanto, em meu entender, só vejo sentido em hierarquizar um conhecimento a partir daquilo a que ele se presta, isto é, seu fim. Nesse ponto me coloco como pragmático.

Na continuidade voltaremos às questões sobre Teoria, Teoria Científica e a Teoria da Evolução.

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