sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Choque Cultural? – Devir e Dever no BBB

falsidade3 Mesmo não acompanhando com assiduidade o BBB, esse tipo de programa sempre me atraiu por um aspecto antropológico. A idéia, que no início suscitava a observação do comportamento humano em uma situação de exposição, contaminou-se com uma representação forçada dos participantes em cada edição. Apesar desse aspecto negativo o programa resiste. Resiste muito pelo apelo ao que há de voyeur no ser humano e pela catarse que é expurgar seus próprios problemas e viver a fantasia alheia, na vida do “outro”; como um folhetim que promete a realidade. Tudo farsa, mas uma farsa que é igual a própria realidade que vivemos. Afinal, a realidade pode muito bem ser uma grande farsa bem contata com anuência coletiva. Se fosse, jamais perceberíamos, pois como farsa, ela estaria calcada justamente naquilo que não teríamos dúvida de sua concretude.

Há de se pensar até se a representação do que tomamos como concreto não se constitui em farsa também, mas isso é outra história. Farsa ou não, a vida e a verdade são constituídas pelos choques de cada singularidade existente, o que demonstra que não há um Télos, ou um Dever em ser assim ou assado; mesmo quando duas pessoas se encontram ou quando duas culturas se encontram. Embora haja convenções que “encurtam” o caminho da aproximação, essas convenções jamais podem se tornar metafísicas. Elas precisam ser reafirmadas ou reformuladas na própria singularidade do encontro: é na singularidade dos encontros que se alimenta o Grande Discurso, o Logos, nossa maneira de ser, nossa cultura. Ou seja, nos fazemos no Devir e não possuímos qualquer dever em sermos como as convenções nos mandam.

É esse aspecto que gostaria de trazer aqui. Apesar da característica do programa, um dos trunfos do BBB é ser encabeçado por alguém, sem sombras de dúvidas, culto. Pedro Bial, pela experiência, inteligência e cultura, dá ao programa níveis que um mero entertainer (ou apresentador, mestre de cerimônias) não conseguiria. Ano passado, lembro bem, chegou a citar Wittgenstein em um dos paredões, com sua famosa frase: “Nada é tão difícil quanto não enganar a si próprio”. Para o teor do programa a frase caiu como uma luva. Mesmo que para os insossos participantes a frase não tenha significado nada, ao dizer essas coisas, ao menos ao público (e dentro dele, para aqueles que se interessaram – como eu), Bial pôde suscitar reflexões interessantes. Ou seja, nas mãos do Bial, o programa sai do óbvio (do comercialmente aceito) e entra no terreno das possibilidades múltiplas, aumentando a audiência também, com certeza.

pedro_bialColocando à parte a menção de Wittgenstein, em cada paredão Bial faz uma reflexão sobre a passagem do “brother” até aquele momento, enfocando aspectos além do bidimensional e do mais óbvio. Isso tudo mesmo dentro do “oba-oba” mercantilista do programa. Claro que essas inserções e discursos do Bial se mantém no tom popular e acessível do programa, mas suscita reflexões que podem até fazer com que alguém decida olhar as coisas além do senso comum. Se funciona, não sei, mas se acontecer é algo bem vindo, sempre… Bial é um intelectual que está para além do jornalismo. É apaixonado por poesias e já o assisti declamar sem ler passagens inteiras de Guimarães Rosa; autor pelo qual Bial mantém viva admiração e estudo constante. Por essas e outras é difícil engolir quando ele escorrega. E ontem, dia 28/01/2010, a meu ver, ele escorregou feio. Se esborrachou no chão…

A edição atual do BBB, a de número 10, traz uma diversidade nunca vista (nas próprias palavras de Bial). E não só sexual, como ficou óbvio na inserção de três homossexuais assumidos no programa. A diversidade é etária e intelectual também. É o grupo mais heterogêneo das edições e abriga uma doutora em lingüística e professora universitária (a sister Elenita), um publicitário empresário Web (Michel), um advogado atuante (Alex), uma jornalista (Ana Angélica), uma dentista (Fernanda)  –  todos na faixa acima dos 25 anos – além dos óbvios, malhados e novinhos dublês de modelo, ator/atriz, organizadores de eventos, estudantes e os “quero aparecer” de todas as edições.

Não que Bial devesse mudar sua forma de apresentar, já que ele apresenta para o público e não para os Brothers, mas ontem, ele parece ter falado sem refletir muito sobre a mensagem que estaria passando. O que Bial fez, dentro da própria proposta de diversidade do programa, foi argumentar metafisicamente sobre um fato que se resolveu sozinho no Devir e que não havia Dever algum (ou mesmo motivos justificáveis) de ser diferente.

 

A Gafe

Lia-Akon01 Ontem, Pedro Bial denominou como “Choque Cultural” a reação de Lia e a atitude do rapper senegalês-americano Akon (combinemos aqui que ele não é um simples “rapper”, mas um cantor, compositor e produtor de singles de R&B - Rhythm and blues, além de Rap). Na festa de quarta-feira, dia 27/01, o cantor e seu grupo faziam um show para os participantes do programa. À certa altura Lia (cuja profissão é “dançarina de balada”) foi chamada ao palco pelo cantor. Enquanto dançavam Lia o tocou e fez gestos sensuais em sua direção, dançando com toda exuberância e técnica de quem conhece aquilo que faz. Quando virou de costas o cantor chegou mais perto e tentou (o que chamamos aqui no Brasil) “encoxa-la”; algo semelhante à “dança do crew”. Lia simplesmente se afastou, fez sinal de “não” com o dedo, ele aceitou, se abraçaram e a festa continuou. Não se vê o cantor tentando novamente.

Digamos que a atitude do cantor em relação à posterior reação de Lia tenha sido uma gafe. Está óbvio, porém, que o terreno ético (ou seja, a postura mais adequada a se assumir) seja tênue numa situação como essa. A tentativa de “encoxada” de Akon pode ter tido, ao menos para ele, a mesma conotação da dança sensual da moça. Ela recuou, não permitiu, e ele se posicionou educadamente. Pronto, acabou. Isso acontece diuturnamente no Brasil e no mundo; o que não significa que não haja casos de exageros e abusos a partir daí. Nesse caso, especificamente, não houve.

No programa de ontem, porém, Bial quis brincar com a situação e claramente repreendeu a moça em defesa do cantor (sabe-se lá por que). Quase a chamou de “falsa puritana”. Bial, que tem costume de ir além do que está óbvio e tecer comentários mais profundos, errou naquilo que estaria por trás do que aconteceu. Ele diagnosticou metafisicamente o fenômeno como um “choque cultural", o que, para ele, consistia em ninguém ter culpa da moça “ter uma bunda bonita e ele [Akon] ser pegador” (segundo suas palavras – vide vídeo). Quando ele pergunta à moça se ela teria ficado magoada, ela responde que não, que o cantor estava “freedom demais” e que não era nada que um “nãozinho” não resolvesse.

O “Freedom demais” atende a uma perspectiva dela, tudo bem. Bial poderia ter relativizado essa perspectiva evocando a questão do quanto é tênue, em um palco e dançando sensualmente, localizar o bom senso na questão da proximidade e do permitido. A solução da moça foi perfeita, mas sua justificativa é relativa à sua perspectiva. De qualquer forma o que houve foi apenas uma ajuste mútuo de expectativas. Se Bial quisesse “limpar a barra” de Akon, bastaria ele relativizar o julgamento da moça e tudo estaria bem como foi na própria festa.

A meu ver, Bial errou a mão ao dizer: “Podem me chamar de machista, mas acho que você provocou.” – Quase que imediatamente (como se desse conta do que disse), ele “inventa” a questão do choque cultural, dizendo: “O que a gente entende aqui como toque, dança e tal, na cultura americana que é muito mais puritana, pô o negão ficou doido!”.

Postular um suposto choque cultural no que aconteceu e no contexto em que aconteceu, me fez imaginar um suíço subindo ao palco do Teatro Municipal tentando “encoxar” a Ana Botafogo durante uma apresentação do Lago dos Cisnes de Tchaikovsky. Imaginem a cena: nós, tupiniquins, apresentando um balé clássico de origem européia e um europeu confundindo tudo e dando uma de louco?

Esta ilustração estapafúrdia não é diferente do que Bial fez. Penso, inclusive, que a gafe do Bial (muito maior que a do Akon) possui dois momentos distintos, pois foram duas explicações tentadas:

1. A Provocação da Lia;

2. O Choque Cultural.

 

A Provocação

Quando se fala em provocação é preciso saber ao que se está provocando. Insinuar-se sensualmente ou mesmo provocar não significa “solicitar” algo além do que se espera. Quem provoca não provoca apenas alguém, provoca alguém para alguma coisa. No entanto não fica explícito o que se espera, ou ao que se provocou. Logo, ao provocado, suscita-se testar, tentar e delimitar as possibilidades. Não significa que a situação não tenha limites, mas seus limites não estão delineados e claros.

Provocação (pro-vocatio) é assumir uma atitude ativa para fomentar um chamamento.  O elemento mórfico “pro” (o derivado do latim e não do grego), indica uma posição “a favor de”. Nesse caso, a favor do “vocatio”, da vocação: daquilo que o outro, o provocado, pode fazer. A essência dessa vocação, seu Télos, é a criação no devir do choque entre as expectativas e desejos. No entanto, entende-se vocação como uma ação voltada ao que se é essencialmente. Ou seja, um chamamento à essência do provocado.

akon-gal Segundo Bial, Akon é um “pegador”. Ora, chamado a exercer sua vocação a partir dos movimentos sensuais de Lia, restou-lhe apenas tentar “encoxa-la”. Logo, até se ele tivesse ido além do que foi, tudo seria “culpa” dela, pois ela simplesmente solicitou que Aiko exercesse sua vocação.

Esse argumento é semelhante ao argumento feito pelos alunos e defensores da UNIBAN quando protagonizaram o ato hediondo contra a estudante de mini-vestido. É semelhante também a argumentos que tentam colocar a culpa na vítima do estupro, ou mesmo daqueles que nos culpam por sermos assaltados ao passarmos em um beco escuro. Ora, onde estamos?

Antes de contra-argumentarem dizendo que estou fazendo um reductio ad absurdum para atacar Pedro Bial, analisemos melhor a questão. Como é possível “essencializar” o rapper na farsa que ele, empresários e mídia montaram para designa-lo aos fãs e justificar qualquer ato que estivesse atrelado a sua suposta “natureza”? Integrantes de grupos de Rock, rebeldes, quebram hotéis, morrem de overdose e levam milhares de fás a imita-los e idolatra-los pelo símbolo que representavam: o da rebeldia. Mas nunca vi os hotéis serem acusados de terem provocado irresistivelmente os atos dos “rebeldes”. Eles optaram e viveram suas vocações a partir de si mesmos e não provocados pelo hotel.

Os hotéis, mesmo representando uma “prisão” obrigatória, um confinamento forçado que alimenta o sistema que vende a banda e a criação artística dos seus membros, não são e nunca serão culpados por despertarem a revolta dos roqueiros. Tampouco são eles que contrariam as expectativas dos artistas revoltados que sentem sua privacidade massacrada pelo sucesso.

De quem é a culpa por um assalto numa rua escura? Do assaltado, do policiamento deficiente ou do bandido? Os defensores da “provocação” argumentarão a favor da “essência” criminosa do bandido, e criarão “deveres” os quais teremos que cumprir para respeitar essa essência.

Todo essencialismo postula deveres, pois concebe naturezas fixas, imutáveis e irresistivelmente atuantes em toda sua potencialidade. Quem se meter com elas sabe o que está pedindo e não pode reclamar. Esse pensamento justifica guerras, barbáries e toda espécie de vilipêndio e abuso que estamos cansados de presenciar ou mesmo ler na história da humanidade.

No caso que estamos tratando aqui, Akon não precisava da defesa de Bial, muito menos uma defesa desse tipo; que depõem contra o próprio Bial. Akon soube, no devir, respeitar e ler os sinais da Lia para posicionar-se de acordo com a situação. Ela também poderia ter aceito o contato e ambos dançado juntos numa bela “encoxada”. Tudo estaria bem também.

O que eu quero dizer é que não há um Dever em um encontro. Um encontro é uma construção conjunta que abriga singularidades a partir daquilo que as difere e as assemelha. Quando um encontro é traumático é porque alguém subjugou o outro e lhe impôs seu posicionamento como essencial ao encontro. A prudência em não se expor à riscos desnecessários, não exclui de forma alguma o dever do outro construir o encontro no devir dos acontecimentos. É o Devir como Dever em contraposição ao Dever em não Devir.

 

O Choque Cultural

akon-bbb2 Como é possível imaginar um choque cultural entre uma cultura americana “puritana” e uma cultura tropical permissiva (e com limites tênues) a partir de um show internacional de um senegalês-americano? Fosse um texano poderia até fazer sentido (com muitas ressalvas). Mas nem precisaria ter origem africana. Basta comparar a cultura do “rebolado” do samba-axé-funk brasileiro e a cultura do “shake that ass” dos rappers americanos; ambas de fundo afro, sensual, permissivo e de limites tênues. Seja lá quem as faça, estão falando da mesma coisa, do mesmo fundo cultural. Não há choque.

Outro ponto é a questão da “globalização” da própria cultura. Estamos falando de um popstar e não de um músico em turnê por seu destaque no regionalismo inusitado de suas canções, retirado de algum local isolado e sem contato com o mundo. Akon não é do cafundó do interior dos EUA, retirado de seu habitat vindo tornar o banjo (por exemplo) conhecido mundialmente. Nem um Ianomâmi batucando jogado na civilização para mostrar sua arte, e que precisa de nossa condescendência para entender suas “gafes”. Mais uma vez, não houve choque, não houve descontrole. Foi uma gafe totalmente natural, própria da idiossincrasia do momento e que teve seus limites resolvidos no próprio momento, com classe, aliás, de ambos.

Ou seja, o remendo (alegar que se tratava de um choque cultural, nos motivos alegados por Bial) foi até pior do que dizer que a Lia havia provocado Akon. Alegar choque cultural significou que é uma farsa a diversidade proposta no programa. Será que Bial se deu conta do que disse e as implicações daquilo que disse? O que percebo é que o BBB está sendo comandado por um metafísico. Será? Penso que não. E se não for, dessa vez o Devir foi cruel com Bial. Ninguém mandou ele tentar consertar na hora.

3 comentários:

Anonymous disse...

Incrivelmente, o comentário do Bial foi o primeiro momento/noite que assisti dessa edição do BBB. Achei tão estranha a percepção dele sobre o "choque cultural" entre uma brasileira reboladeira e um happer (todos sabem que eles também adoram rebolar), que fiquei curiosa e cliquei no google para melhor entender o que havia ocorrido. Tive a felicidade de encontrar essa perfeita reflexão sobre o tema. Como diriam minhas sobrinhas adolescentes: O Bial viajou! Parabéns pelo excelente artigo.

Anonymous disse...

Belo Texto
A explicação que Bial deu sobre choque cultural, tentando justificar a atitude do rapper foi uma das maiores besteiras que ele já disse no ar, e só num besteirol como o próprio BBB, não houve ninguém para contestar, nem a participante,segundo Bial, provocadora.

Abraços

Ricardo Leal
Blog ETC&TAL
etcetal@tudoglobal.com.br

Gilberto Miranda Jr. disse...

Muito obrigado pelos comentários. Realmente é de se indagar esse tal de "choque cultural". mas penso que o Bial não se deu conta das consequênias de seu raciocínio. Isso é problemático para alguém com sua penetração na mídia e formador de opinião....

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