sábado, 9 de janeiro de 2010

Do Dever em Não Devir

DAutor_alicevalentealves_luzenten55 Existem coisas que, mesmo para um cético como eu, parecem ter sido obra de alguma deusa muito esperta. Falo da deusa Moîra, o Destino. Ter conhecido, mesmo que virtualmente, a artista plástica e poeta (e por que não Filósofa) Alice Valente Alves, seus trabalhos e suas idéias, foi para mim um grande momento no ano de 2009. Por acaso nos adicionamos pelo Facebook a partir de comunidades comuns e pudemos trocar breves idéias. A partir delas pude conhecer melhor seu trabalho. A admiração e a urgência de lê-la se fez presente desde aí.

Não estou aqui para divulgar nada, claro, mesmo que seja importante e necessário que um trabalho desse porte e alcance seja divulgado às expensas. Portanto indico, para que conheçam, os Blogs e Sites dessa artista e filósofa portuguesa antes de escrever algumas linhas sobre um texto seu que impressionou-me muito.

Site de Alice Valente – onde contém sua biografia e uma cronologia de seus trabalhos, textos e participação no cenário artístico e cultural português.

Blog de Alice Valente - ALI_SE – onde ela publica textos e parte de seu trabalho como fotógrafa e artista, além de poemas.

Seu trabalho sobre a relação do corpo com a existência é fantástico e gostaria de fazer algumas considerações sobre um texto específico dela que pode ser lido na íntegra em seu site.

Esse texto da Alice é uma Comunicação proferida em 2007 na 11ª Mesa-Redonda da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, cujo tema na ocasião era Crenças, Religiões e Poderes: dos Indivíduos às Sociabilidades.

O estilo do texto, em português de Portugal (que adoro ler e nos dá uma dimensão totalmente diferente de nossa língua – uma dimensão clara e original da língua que pensamos, sem qualquer justificativa, ser só nossa aqui no Brasil) é de uma precisão e beleza recompensadora, traduzindo de forma brilhante muito dos pensamentos e idéias que venho desenvolvendo em meus estudos. Por isso o interesse, por isso preciso comentar, ampliar, apropriar-me despudoradamente desses dizeres fantásticos.

É claro e notório, ao menos para quem acompanha esse Blog, que minha linha de pensamento e minhas concepções filosóficas tem muito a ver com o que ela diz e pensa. A necessidade de romper dualismos (ou de transforma-los de dicotômicos em dialéticos), o interesse estético da construção de possibilidades e a imanência na alteridade como construção possível do Logos são elementos presentes em meu pensar e expressão e no pensar e expressão de Alice. Esse texto é apenas mais um dos casos. Falemos dele com mais vagar…

 

Do Dever em Não Devir

O primeiro destaque vai para a percepção que postula a tradição filosófica sempre se aproximando mais às formalidades da Ciência (conspurcando-se não raro com visões teológicas e teleológicas arregimentadas do mito) do que da Arte. E para explicar o Devir a Arte é chamada sem que ela (ao menos na tradição filosófica) ganhe um estatuto de verdade que merece.

Penso ser muito lúcida essa visão. Mas é importante que nos questionemos como a Filosofia faz isso. Seria uma traição em seus princípios? Em meu entendimento só pode acontecer essa aproximação porque a Filosofia é um SER sui generis, assemelhando-se muito mais a um meta-SER do que a um SER. E por isso ela pode ser Arte, Ciência e Doutrina, mesmo que os três jamais se comuniquem e muitas vezes sejam excludentes. Pode ainda ser um meta-SER dessas três coisas; quando elas se oportunizam para pensar sobre si ou refletir-se.

141arte1_clip_image022_0000 A Arte e a Filosofia comungam de um aspecto muito especial. A Filosofia intercambia os saberes e percepções humanas dando ênfase aos princípios norteadores do que contempla, ao passo que a Arte faz a mesma coisa dando ênfase aos princípios estéticos e simbólicos. Algumas vezes essa ênfase distinta as afastam, outras tornam-nas quase que a mesma coisa em discursos diversos. Quando a Arte é escrita (como a poesia) a distinção é tênue (basta lermos alguns textos filosóficos de Merleau-Ponty).

Há na corrente filosófica que se distancia da corrente teleológica platônica, por exemplo, uma aproximação maior. Nela temos os pré-socráticos, alguns sofistas e os chamados irracionalistas, que vêem a realidade, assim como a verdade, como imanente da confluência das singularidades humanas e não uma transcendência que padroniza a existência a partir de um SER parmenediano. Nesse aspecto, não vejo que o motivo esteja na consideração de que o Devir não admite ou não precise de retórica. O Discurso, o Logos composto pela imanência das singularidades é conceitual tanto na Arte quanto quando a Filosofia se aproxima dela.

Há retórica. E ela é “imanentemente” universalizante, mas não tem essa pretensão: dispensa essa necessidade, apenas expressa-se. Ela não quer ditar o real, mas compor, construir o real em sua singularidade. Talvez seja nesse aspecto que Alice diz que o Devir, na Arte, é:

(…) acção, é livre e gerador de acontecimentos de um nada inesperado por antecipado em prioridades, que embora indefinidas, advém com estatuto próprio e auto-regulador das universalidades.”

Mas essa ação é também retórica (se não nos ativermos ao aspecto pejorativo do termo). Pois é discurso, logos, ornamento metafórico para apreensão de uma realidade sentida, intuída, vivida desde a carne, mas que não se revela formalmente, necessitando do símbolo estético como síntese.

 

A Petição de Princípio Kantiana

kant O discurso kantiano cria uma ambigüidade muito bem detectada por Alice. No entanto afirma-la se torna indigesto por que entra em choque com sua petição de princípio de uma Liberdade Autônoma no ser humano em relação de causalidade com a Razão. Kant estabelece de forma Ad Hoc a liberdade como condição de possibilidade para a Razão Prática Pura proporcionar o Dever como Imperativo Categórico. Em outras palavras, a Razão Pura só pode comandar nossa Vontade se ela gozar de uma liberdade e de uma autonomia inquestionável e souber comandar e se desvencilhar de nossas pulsões (chamadas por Kant de inclinações). Ele dogmatiza esse ponto e cai em contradição.

É claro, e nisso concordo com Kant, que se fôssemos totalmente racionais e se essa racionalidade fosse livre e autônoma, teríamos como dever natural um imperativo de ação em vista do bem comum, assumindo como máxima o que ele escreve:

age de tal maneira que passas a usar a humanidade, tanto em tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio” (KANT. Fundamentação da Metafísica dos Costumes, p. 59)

Ao passo que a barbárie, a guerra, a morte e a crueldade humana seriam injustificáveis. Elas são de fato injustificáveis. Mas existem. Ou há algo muito errado com essa Liberdade como condição de possibilidade, ou há algo muito errado com nossa racionalidade.

A despeito da possibilidade e da evidência de existirem conhecimentos totalmente intelectuais, que não dependem de nossa sensibilidade (afirmação controversa na medida em que há possibilidade da existência de direcionadores emocionais e sensíveis para a razão), não decorre daí que exista racionalmente a possibilidade de se extrair deveres além e aquém daquilo que nos afete na alteridade e compõe essas mesmas inclinações.

Kant argumenta muito bem a favor da possibilidade do conhecimento (embora Habermas descontrua boa parte disso), mas escorrega quando quer transpor isso em seu sistema ético. Uma Vontade Autônoma que racionalmente se direciona para além de nossas inclinações, pressupõe uma autonomia que não temos, a não ser que a mente fosse algo fora de nossa natureza, ou a nossa verdadeira e única natureza: duplo de uma alma ou de uma centelha divina.

É esse argumento, não admitido, que está por traz do discurso kantiano, como bom pietista que era: argumento injustificável que entra em contradição com o próprio discurso kantiano que postula que não temos acesso ao noumenon e sim apenas ao fenômeno; tanto das coisas quanto de nós mesmos. Só para reforçar podemos citar:

Tal faculdade [ser consciente de si mesmo] intui então a si mesma não como representaria a si imediata e espontaneamente, mas segundo o modo como é afetada internamente, conseqüentemente como aparece a si e não como é.” (KANT, Crítica da Razão Pura - (Seção Segunda da Estética Transcendental - Do Tempo, §8, II, p. 88)

Nessa lacuna, nessa contradição e ambigüidade com que Kant, talvez sem perceber ou não se atendo a justificar de uma forma categórica, é que os irracionalistas entram. Um fenda que abre como impossível localizarmos a racionalidade como autonomia e liberdade. A racionalidade humana, por mais capacidade teorética e abstracional que se arrogue, está inserida numa simbólica que não a deixa ser livre. A liberdade não é autônoma, ou seja, não é consciente de si mesma: ela se acredita livre de dentro de sua prisão. Quando livre de fato, ela é pulsional, criativa, puro sentimento e ultrapassamento que só depois é apreendido e colocado em rédeas pela racionalidade. Quando a racionalidade apreende esse novo e o codifica é porque, de alguma forma, esse novo conseguiu se fazer na alteridade e compor os discursos coletivos, ou seja, tornar-se inteligível. É dessa forma, parece-me, que a Arte e a Filosofia transformam o mundo e as gentes.

Alice cita Fernando Gil numa argumentação que, embora não explore a lacuna no próprio raciocínio de Kant, parece-me, chega a essa mesma conclusão.

 

A Arte como Fundamento da Cultura

cultura_arte O destaque é para as brilhantes colocações sobre entretenimento e arte feitas por Alice na continuidade do texto. Nesse ponto há a discussão que puxei no início desse parecer entre a transcendência e a imanência. Arte é imanência, por isso Cultura. Emerge da singularidade como jorro criativo e compõe o discurso identitário coletivo, Logos; entrando nesse jogo de construção constante do real e da verdade. O entretenimento não. Ele é superestrutura que defenestra a singularidade em nome de um modo coletivo de SER, metafísico, determinando uma verdade que constrói uma realidade engendrada por um sistema de idéia fixado ideologicamente.

O entretenimento confundido com arte fez com que Platão só aceitasse a arte que direcionasse o espírito humano para sua teleologia do Belo, do Justo e do Bom, ou seja, a arte como Dever e instrumento para conhecer “A Verdade” (preconizada como única e advinda de um plano superior extra-mundano e extra-sensível). Para Platão o que saísse desse objetivo ou dessa idiossincrasia era pura mimese.

Não entrarei aqui nas diversas fases (e possibilidades interpretativas dessas fases) da Poíesis de Platão. Basta mencionar que a exaltação da criação humana em O Banquete é abandonada em A República, em Fedro e depois tentada uma conciliação em O Sofista.

Nietzsche vem ao encalço de Platão, claramente em oposição a arte como adjutório legislativo do Estado.. Curiosamente, mesmo em oposição, Nietzsche e Platão comungam o sonho da arte como algo mais elevado e redentor no homem (transformador, eu diria), mesmo que por vias completamente diferentes: um [Nietzsche] a partir da imanência e outro [Platão] a partir da transcendência.

Para Platão a arte deveria ajudar o homem a transformar-se virtuosamente naquilo que ele precisa ser para uma sociedade feliz. Por isso a arte que facilita o simulacro e a criação de “irrealidades” era condenada, pois só a representação que nos conduz à racionalidade deveria ser valorizada. Para Nietzsche, no entanto, era justamente essa arte que Platão defenestrava que constituía a força humana transformadora que reformulava o homem na criação de enfrentamentos estéticos da realidade.

Nietzsche em O Nascimento da Tragédia e o Espírito da Música e tardiamente em seus fragmentos da década de 1880, explica como os gregos domaram apolineamente Dioniso e sua sede destruidora e afeita ao monstruoso da realidade mais nua e crua. Esse gênio grego, ao dominar Dioniso, mas concedendo-lhe espaço para viver, transformou a Grécia na mais espiritualizada e artística nação jamais vista, possibilitando tanto a mais refinada arte quanto a própria Filosofia. A queda (chamada por Nietzsche de decadence) veio da retirada sistemática dos aspectos dionisíacos da arte grega: a partir de Eurípedes no Teatro e a partir de Sócrates (o platônico) na Filosofia.

Para Nietzsche a arte e a possibilidade humana de construção de si próprio na alteridade (no jogo de forças entre as Vontades de Potência) deveria ser o fundamento da Cultura. Para a corrente tradicionalista platônica, a Cultura desperta e legislada teleologicamente deveria ser o fundamento da arte; na prevalência de uma Verdade que não se assume como perspectiva e traduz uma Vontade de Potência absoluta e niilista per excelence. Esse niilismo é decorrência da própria razão elevada ao estatuto de “verdadeira natureza humana” e levada à Vontade de Nada a partir do medo humano da ignorância, do obscuro, da incerteza e do imponderável: um terreno prolífero para a dominação sistemática.

 

Do Dualismo para o Monismo

É na crença de uma necessária Razão Pura e que precisa de liberdade total para controlar e direcionar nossas disposições e inclinações (Vontade) que o dualismo se estabelece; levado às expensas em Descartes. E assim como Platão, é ele quem prevalece ao cumprir o projeto que terá seu ápice em Kant e posteriormente no positivismo.

Mas há alguns poucos anos da época de Descartes, Spinoza diria:

Nem o corpo pode determinar a alma a pensar, nem a alma pode determinar o corpo ao movimento ou ao repouso ou a qualquer outra maneira de ser” (SPINOZA, Ética, III, 2, p. 199)

dualismoA Vontade humana é uma única coisa entre decisões racionais, desejos e determinações físicas. Não faria sentido, para Spinoza, uma Lei Moral agindo como um imperativo categórico que comandasse exclusivamente e de forma racional as ações humanas. Kant parece não querer admitir esse dado e justifica-se na idéia de que um princípio supremo da moralidade não pode condicionar-se em nada ligado à natureza sensível.

É o que Alice nos diz citando o próprio Spinoza, Deleuze e José Gil. Merleau-Ponty explicaria no século passado esse timing, esse momento do ato criativo a partir do elemento Carnalidade e da possibilidade de um Olhar encravado no mundo quando ele se depara com o Impressionismo francês.

A arte, para Merleau-Ponty, é a expressão máxima da Ontologia de um Ser Bruto, encarnado, que recupera para si um Olhar que “desprivilegia” uma dimensão humana especial e concede à percepção a totalidade do Homem. Esse Olhar está acima do Bem e do Mal, é amoral, embora a partir dele seja possível construir uma ética na alteridade. É através do Olhar que primeiramente interrogamos o mundo, sendo o corpo um sistema voltado integralmente para essa inspeção; tanto do mundo quanto do Outro. Não há, portanto, a liberdade racional que direciona uma Vontade para uma interrogação apartada de nossa totalidade. Nesse aspecto podemos, enfim, questionar a Petição de Princípio kantiana sem negar a liberdade, só questionando a liberdade como petição e não como construção possível a partir de uma perspectiva monista. A questão agora é sobre diferença e identidade.

 

Criar a partir da Diferença

Deleuze Nesse ponto é importante, a partir do texto da Alice, empreender uma certa defesa da citação sobre Lacan em contrapartida à filosofia da diferença de Deleuze. O Sentir só é possível marcando a diferença, ao passo que o pensar sempre procura a identidade. Privilegiar o sentir é marcar a diferença e privilegiar o pensar é marcar a identidade. Para Deleuze o sentir viola o pensamento identitário e marca a diferença para o pensar criativo (a partir do sentir). É o que Deleuze chama de “encontro fundamental” em contrapartida aos “encontros extensivos”.

Os encontros “extensivos” não colocam em jogo o ato criativo. Eles subordinam-se à uma racionalidade que segura o sentir e a percepção da diferença. Ela busca, primordialmente, a identidade e apreende o Outro dentro daquilo que é comum. Os encontros “fundamentais” põem em jogo outra experiência de exercício das faculdades de sentir, memorar, imaginar, pensar etc. É um processo complexo marcado por desconstrução e re-elaboração. Não há como vivenciar essa experiência sem a nítida marcação da diferença, da disjunção.

Se a criação é possível a partir da diferença que nos conspurca na alteridade, nos proporcionando re-elaborações da verdade e do real a partir de encontros fundamentais, há de se esperar um subproduto possível e indigesto disso, como um ônus a ser tratado em separado para que não ocorra: por exemplo o racismo.

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As afirmações de Lacan sobre a existência de futuro no racismo estão intimamente ligadas a essas considerações deleuzianas. O extravio do gozo identitário é o terreno da criação. Criamos ou discriminamos, eis nossas saídas éticas. Ou nos tornamos artistas de nossa existência na alteridade, marcando a diferença como mola propulsora da criação, ou nos tornamos racistas e preconceituosos conservando o gozo que situa o Outro radical apartado e discriminado de nós.

Reproduzo aqui um trecho de um artigo inacabado meu que pontua a questão da Pulsão de Morte como “sintoma do esmagamento da totalidade do homem no devir”:

Pulsão de Morte traz alusão ao que Freud especulou sobre o caráter pulsional conservador, bem como seu caráter metafórico trazido pela mitologia nas histórias de Eros e Thanatus e no célebre diálogo O Banquete de Platão, mais especificamente na fala de Aristófanes.

Tanto a Pulsão da Vida quanto a Pulsão de Morte possuem como características atenderem a um desejo de retorno a uma situação primordial, ou nas palavras de Freud: originária. O Princípio do Prazer é conseqüência do princípio de constância: o impulso inconsciente humano de manter tão baixa quanto possível o nível de excitação psíquica. Freud diz:

“(...) na realidade, esse último princípio [Princípio de Constância] foi inferido dos fatos que nos forçaram a adotar o princípio de prazer. Além disso, um exame mais pormenorizado mostrará que a tendência que assim atribuímos ao aparelho mental, subordina-se, como um caso especial, ao princípio de Fechner da ‘tendência no sentido da estabilidade’, com a qual ele colocou em relação os sentimentos de prazer e desprazer.” ((FREUD, Vol XVIII - Além do Princípio do Prazer, p. 5.)

Estar ‘Além do Princípio de Prazer’ é uma tentativa de explicar como esse mesmo princípio acontece por comportamentos autodestrutivos e desprazerosos, caracterizando a Pulsão de Morte. Aludi-la como “sintoma do esmagamento da totalidade do homem no devir” é pensar a Razão Pura como uma resposta racionalizada da Vontade de Nada, caracterizada pelo saber iluminista de um progresso irrestrito e absoluto fora da História (nos termos hegelianos); crítica contundente feita por Nietzsche em suas obras, mais notadamente em referência aos seus conceitos de “Vontade de Verdade” como uma vontade de potência negativa, que se transforma em “Vontade de Nada”.

Podemos destacar dois trechos de seus escritos nesse sentido:

Simplesmente não é possível esconder o que propriamente exprime esse querer inteiro, que recebeu do ideal ascético sua orientação: esse ódio contra o humano, mais ainda contra o animal, mais ainda contra o material, essa repulsa aos sentidos, à razão mesma, o medo da felicidade e da beleza, esse anseio por afastar-se de toda aparência, mudança, vir-a-ser, morte, desejo, anseio mesmo — tudo isso significa, ousemos compreende-lo, uma vontade de nada, uma má-vontade contra a vida, uma rebelião contra os mais fundamentais pressupostos da vida, mas é e permanece uma vontade!... E, para ainda em conclusão dizer aquilo que eu dizia no início: o homem prefere ainda querer o nada, a não querer...” (NIETZSCHE, Para uma Genealogia da Moral - Um Escrito Polêmico, III § 28, p. 370)

A derivação dessa Vontade de Nada a partir do Princípio de Constância freudiano possibilita-nos trazer outro trecho de Nietzsche:

A vontade de querer preservar a si próprio é a expressão de um estado de indigente, uma restrição do verdadeiro e fundamental instinto vital, instinto que visa à expansão do poder e, em função disso, coloca muitas vezes em jogo e sacrifica a autoconservação. (...) A luta pela vida é exceção; restrição momentânea de querer viver; o interesse das lutas, grandes e pequenas, continua a ser o da preponderância, do aumento, da expansão, da força, conforme essa vontade de poder, que é precisamente vontade de viver.” (NIETZSCHE, A Gaia Ciência, § 349, p. 190.)

Ou seja, a Razão Pura como ideal ascético, que privilegia um fragmento da totalidade humana, se coloca no presente artigo ao lado do Princípio de Constância freudiano, que por sua vez nos remete ao niilismo da racionalidade exagerada denunciado por Nietzsche. A idealidade apolínea da realidade como Vontade de Verdade nos levaria a essa Vontade de Nada, Pulsão de Morte, portanto. Não é difícil, daqui, trazermos também as análises de Horkheimer e Adorno em sua Dialética do Esclarecimento, em que questionam como a racionalidade pode levar à barbárie e aos regimes totalitários.” (por Gilberto Miranda Júnior)

A partir dos Encontros Fundamentais deleuzianos, marcados pela diferença que propicia o ato criativo (o espanto do mundo e das circunstâncias como Outro), temos duas questões aí:

  1. a postura ética que dá vazão à Pulsão de Vida, construtiva, afirmativa; cirando alternativas na alteridade pelo jogo de forças (também criativas) para algo em comum, mas que tolera e respeita a diferença;
  2. a postura ética que dá vazão à Pulsão de Morte, destruidora, excludente, negativa; criando meios e justificativas para o autoritarismo e a imposição de uma única visão, sempre fragmentada e absoluta.

lacan A advertência de Lacan é no sentido 2. O extravio do gozo é necessário. A necessidade está “além do princípio do prazer”, mas entregue às nossas pulsões. Transformar a Pulsão de Morte, o Thanatos, a força destruidora e desmesurada Dionisíaca em força criativa, em construção, só é possível a partir de uma postura ética artística, senão cairemos na barbárie, no autoritarismo e no racismo denunciado como sintoma por Lacan.

A presença do Outro Radical, da diferença, marca a condição de possibilidade da criatividade e do pensar artístico, porque situa o Gozo pelo extravio e nos possibilita escolhermos ser trágicos. Mas também escondem fantasmas, dados por uma racionalidade que precisa de síntese e da identidade, que cria fugas e monstruosidades. Eis o dilema em que nos encontramos.

Esse dilema, e bem sabia Lacan em seus estudos de Merleau-Ponty, é resolvido numa ontologia que elimina a diferença do fundamental, valorizando apenas a diferença da superfície. É o que parece fazer José Gil no trecho destacado por Alice. E isso só é possível diante do Monismo. Não é isso, talvez, que faço partindo de um destaque que marca a diferença entre Deleuze e a psicanálise ao supera-la e trazendo-a a uma nova perspectiva identitária fundamental?

Esse dilema é rompido no pensamento que, fundamentalmente, traz a Alice e eu ao mesmo plano: defenestra postulados do que «devemos de fazer» e nos traz perspectivas do que «somos capazes de fazer». Assim como Spinoza, comungamos a matéria da “potência do Devir e não do Dever”, ou seja, o Devir é sempre um devir-artístico-filosófico.

Do Devir como Dever

corpo Portanto, o que nos resta, é o Devir como Dever e não o Dever como Devir. Nisso, mais uma vez, Alice e eu nos alinhamos. O Devir como dever é a postura ética e estética na construção constante de novos modos de SER que modifica e apura para o vida humana as idéias, conceitos ou ciências psicanalistas, teológicas, políticas, economicistas e mercantilistas.

A Filosofia e a Arte tendo a própria Filosofia como meta-SER, propiciaria o que Alice diz em sua finalização do artigo:

(…) necessitamos urgentemente de uma ciência ligada às Artes e aos afectos, à sensibilidade humana no Devir, em suma carecemos de uma ciência psicológica da Natureza/CORPO com o CORPO/Ser em DEVIR, presente em todas as manifestações do acto criativo

Penso ser a que pretendo fazer sob os auspícios de Merleau-Ponty, Gadamer e da Alice. Em outra oportunidade trarei Gadamer a esse diálogo, pois está ficando muito longo o texto.

 

Referências Bibliográficas

ALVES, Alice Valente. Crenças e poder - do dever em não devir. 11a MESA-REDONDA DE PRIMAVERA Crenças, Religiões e Poderes: dos Indivíduos às Sociabilidades. FACULDADE DE LETRAS DA UNIVERSIDADE DO PORTO. Março de 2007.

FURLAN, Reinaldo, & ROZESTRATEN, Annie Simões (2005). Arte em Merleau-Ponty Natureza Humana, 7 n.1, 59-93 Other: S1517-24302005000200002

FREUD, Sigmund. Além do Princípio do Prazer. Vol. XVIII, em Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, por Sigmund FREUD, páginas 2-37. Rio de Janeiro, RJ: Imago, 1990.

KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes e Outros Escritos. Tradução: Leopoldo Holzbach. São Paulo, SP: Martin Claret, 2005.

—. Crítica da Razão Pura. Tradução: Valério Rohden. São Paulo, SP: Nova Cultural - Coleção Os Pensadores, 1996.

MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da Percepção. Tradução: Carlos Alberto Ribeiro de Souza. São Paulo, SP: Martins Fontes, 2006.

—. O Visível e o Invisível. Tradução: Jose´Artur Gianotti e Armando Mora d´Oliveira. São Paulo, SP: Perspectiva, 2007.

NIETZSCHE, Friedrich W. A Gaia Ciência. Tradução: Jean Melville. São Paulo, SP: Martin Claret, 2005.

—. “Para uma Genealogia da Moral - Um Escrito Polêmico.” In: Obras Incompletas - Coleção os Pensadores, por Friedrich W. NIETZSCHE, páginas 337-370. São Paulo, SP: Nova Cultural, 1996.

SPINOZA, Baruch de. Ética Demonstrada à Maneira dos Geômetras. Tradução: Jean Melville. São Paulo, SP: Martin Claret, 2003.

8 comentários:

Daniel Alabarce disse...

puta merda, gilberto! realmente, esse texto é incrível! Preciso relê-lo e me aprofundar, pois o assunto me interessa muito!

Recentemente eu havia mudado o foco do TCC, iria falar sobre a morte e a concepção trágica de mundo, mas achei que eu não daria conta do recado com tão pouco tempo de pesquisa. Então vou deixar para continuar a pesquisa depois da facul...

e o devir é um aspecto dos mais importantes na concepção trágica!

abraços, amigo!

e vê se aparece no meu blog... (tem um texto em especial que gostaria que vc lesse "sobre a morte ou: ixi, fudeu!" - é quase exatamente o que eu pretendo transformar em monótonografia!)

Gilberto Miranda Jr. disse...

Puxa Dani, sobre sua monografia, é legal você traz Dioniso e a Pulsão da Morte, Thanatos, nisso tudo. Eu vou ler sim seu texto sim. Obrigado, cara.... Gostou do novo layout do Blog?

Luiz Oak disse...

Hey Miranda, saudações. Muito obrigado por ter adicionado o link. Comecarei a dar uma lida seu site right away, mas pelo que vi sei que será fecundo pacas. Você tem album banner pronto pra eu inserir no meu? Numa primeira olhada não encontrei. Abraços! (sim o Orkut também entendeu minha msg como sendo spam)

Gilberto Miranda Jr. disse...

Luiz, no link "Sobre" lá em cima no Blog te leva a uma página que tem um banner para você pegar... Se quiser posso te enviar por email. Obrigado, seu blog é show... Abraços..

Luiz Oak disse...

Inserido, começemos esse processo dialógico entre os blogs de inspiração nos posts um do outro. Abraços!

Daniel Alabarce disse...

muito bom o seu blog, cara! Eu, sinceramente, gosto de ler suas postagens. E, sim, tá com cara mais clean o blog! falow, abraços! APARECE, PUTA QUEPARIU!!!!!

Gilberto Miranda Jr. disse...

Luiz: seu Blog é tudo de bom, adoro lê-lo. Parece-me que gosto das mesmas coisas que te despertam a atenção, mas sua maneira de vê-las e de narrá-las proporciona um prazer múltiplo que foge (ainda bem) dos aspectos que costumo salientar. Isso é ótimo e nos dá uma diversidade maravilhosa.

Daniel: Ohh cara, vou aparecer sim. Muitas saudades da turma toda. Quando o Grego virá? Precisamos agitar o Reflexus também, cara!!! Que bom que gostou do novo visual. Obrigado...

Gilberto Miranda Jr. disse...

Querida Alice, esse dever para um devir-artístico-filosófico é nosso, acredite. E não precisa agradecer. Não foi uma divulgação. Foi um reconhecimento da importância e pertinência de seu trabalho e reflexões. Eles engrandecem muito a diversidade de abordagens que nós, filósofos, artistas, centistas e, simplesmente, humanos, precisamos para dar conta de nosso drama existencial...

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