domingo, 24 de janeiro de 2010

Haiti 2: É possível um mundo para além do capitalismo?

Por Atanásio Mykonios¹

DSC01445 O Haiti parece nos mostrar ainda de forma cabal o fato de que o país deve ser reconstruído com a única referência que nos é possível – o capitalismo. Seria possível outra experiência, justamente em um país arruinado em todos os aspectos? O atual contexto parece negar isto. Imediatamente, todos os esforços se voltam para dois grandes intentos, a saber, o primeiro, humanitário, óbvio, na medida em que todo mundo não irá negar essa ajuda, salvar vidas, oferecer conforto, comida, medicamentos, tratamento médico, cuidar dos feridos e especialmente dos desvalidos sem abrigo. O outro objetivo é mais profundo e neste sentido, especialmente os EUA que mostraram empenho imediato em oferecer ajuda, especialmente, um tratamento de choque, ocupando os pontos estratégicos no que concerne à logística: porto, aeroporto, vias de acesso, etc. A reconstrução do Haiti terá como motivação a inserção do capitalismo em sua face moderna. É necessário que a reconstrução atenda às relações fundamentais do sistema, o país, neste aspecto, está fechado, sequer um Estado com feições comuns ao que encontramos entre nós existe.

haiti2 Por outro lado, a destruição do Haiti, por meio de décadas de ditaduras, exploração, abandono, indiferença e violência, não foram capazes de gerar entre os haitianos outro modo de vida. Isto pode nos revelar, afinal, que os empobrecidos e os explorados não encontram condições para criarem novas formas de relação social econômicas. Não quer dizer com isto que não haja experiências que tentam enfrentar a mercantilização, no entanto, a energia para superar o capitalismo foi extremamente sugada pelo próprio sistema. A reconstrução estrutural e material do Haiti requererá investimentos e anos de trabalho. Os haitianos serão explorados e mantidos sob controle rígido, contudo, serão empregados para serem submetidos a trabalhos pesados e receberão em troca um punhado de dólares, talvez mais do que recebiam até antes do terremoto. Ironicamente, serão mais felizes, terão comida à mesa e poderão levar os filhos à escola primária e com tudo isto, o mundo se orgulhará de reconstruir o Haiti sem os radicais islâmicos, os talibãs, os xiitas, e outros grupos de terroristas, até porque um povo absolutamente vergado receberá qualquer forma de ajuda com muito bons olhos. Assim, as gangues e os traficantes poderão ser controlados pelas forças de mercado ou até mesmo pelas massas de trabalhadores empregadas que exercerão mecanismos de compensação e controle social legitimando a ação das forças policiais que atuarão com o rigor de quem supostamente protege os trabalhadores da reconstrução do Haiti.

Diferentemente de países onde os estados-nacionais ainda exercem papel regulador e notadamente garantidor do processo de mercado, no Haiti, o Estado não existe, mas por enquanto. Ele voltará a existir, provavelmente guindado pelas forças de reabilitação nacional. O Estado será novamente fundamental, não como os membros de muitas ONGs e da classe média acreditam (um modo de garantir a segurança e o estado de direito), mas porque juridicamente regulará as relações de mercado no processo de reconstrução.

É evidente que esses pobres e abandonados não oferecem perigo, a não ser pela violência crônica e pela fome endêmica que assola o país. Sequer terão, ao que parece, forças para assumirem seu próprio destino. O mercado fará isto por eles, indubitavelmente.

E o mundo solidário enviará suas ONGs e sua assistência religiosa. Depois de feito o cerco em favor das grandes empresas incumbidas de reconstruir o Haiti, as esquerdas desmobilizadas atuarão para denunciarem a exploração, os desmandos, a perseguição e especialmente o tratamento de choque contra os pobres. Será tarde, mais uma vez. E mais uma vez o capitalismo encontrará brechas para continuar a produzir o processo de mais valor.

A comoção mundial em torno do drama haitiano revela que a rede de comunicações instantânea promove uma nova forma de solidariedade. De um lado, essa solidariedade leva indivíduos e organizações a oferecerem seus próprios serviços, pessoalmente, são médicos, técnicos, bombeiros. É bem verdade que a maioria das pessoas não encontra tempo, condições materiais e conhecimento para se locomoverem às regiões afetadas por qualquer forma de tragédia. Especialmente, requer recursos em espécie, o dinheiro, a possibilidade de dispor de quantias que garantam a locomoção, a estadia e a volta.

haiti_11De outro lado, a solidariedade do dinheiro, da comida, dos remédios, da água, dos gêneros que servem para manterem vivos os indivíduos abandonados. Essas doações requerem dinheiro. Em outras palavras, a solidariedade do dinheiro serve para movimentar o mercado.

No entanto, muitos lugares se parecem com o Haiti. Favelas, periferias, comunidades abandonadas, diversas metrópoles pelo mundo comportam realidades parecidas. Sabemos que se houver uma tragédia: furacões, enchentes, terremotos, esses lugares mergulharão nas mesmas condições que as do Haiti. Talvez por uma ironia das forças naturais, essas tragédias ocorrem pontualmente e não simultaneamente. O mundo não tem condições de enfrentar diversas catástrofes ao mesmo tempo. Mas tem possibilidade de eliminar a pobreza se quiser.

Mais uma vez, o Haiti será o nosso termômetro, em breve o sofrimento tornado espetáculo dará lugar a outro espetáculo, ainda maior, ainda mais devastador e que prenderá os telespectadores em um novo patamar de audiência planetária, sempre e devidamente patrocinado pelos grandes anunciantes. É necessário vender para garantir até mesmo a ajuda humanitária.

 

1 – Atanásio Mykonios (o Grego) é mestre e doutorando em Filosofia, membro-fundador do Grupo Crítica Radical, articulista, entre outros veículos, da Revista Critério e é meu professor. Esse e-mail ele enviou-me em reflexão ao meu post Haiti: existem coisas que parecem conspirar… Atualmente Atanásio dá aulas na UFVJM, em Diamantina, MG.

2 comentários:

Alexandre disse...

A pergunta é quanto podemos confiar no ser humano?

Gilberto Miranda Jr. disse...

Ou quanto o ser humano confia em si próprio, ou ainda "quando" passará a confiar em seu poder transformador e coleitvo e deixar de ser tutelado por grandes sistemas que beneficiam poucos e dividem migalhas com o resto..

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